sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Marca D'água


- Poesia -

 Romarias e Imagens Eternas
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Apresentação
 Nivaldete Ferreira*

Em tempos de desterritorialização, de perda dos rostos locais e dos lugares de origem, de uma globalização que tinge do mesmo as existências gerais por efeito de uma disposição homogeneizante que tende a ignorar e mesmo a tiranizar as singularidades, eis que vem o poeta caminhando na contramão, conduzindo seu tição aceso com que ilumina a nossa cegueira diante dos viveres sempre-vivos, que são aqueles que a imaginação poética arranca do solo da memória e da observação -com todos os sentidos- e nos oferece no frescor do seu aroma.
O poeta aqui faz uma romaria. Ele é um religioso, mas não no sentido convencional. Religião (do latim religio, cognato de religare) quer dizer religação. Ele religa os de sua comunidade poética, como um arqueólogo/restaurador que arruma o sítio de suas percepções e vai nos levando a cada estação. O lugar de que fala tem um nome –Nova Palmeira, mas mesmo levantando o véu dos rostos locais – como a justiceira -, esse lugar e esses rostos resultam universais justamente porque o poeta fala da humanidade. Que importa o topos? “As roupas estendidas, hasteadas,/São bandeiras de muitas pátrias”, ele diz. Poderia ser nos afastados do Egito, de Portugal, de Uganda. Porque em todos os rincões há personagens singulares, há solidariedade ao morto, há os da feira, há procissões e bebedeiras, há cantorias, há falações, surrealidades, há, sobretudo, o espírito dionisíaco –que vejo como a marca mais definitiva dessa poesia de Borges.
Vêem-se sempre dois olhos brilhando e um sorriso como marca d´água nos seus textos, mesmo quando fala do quase triste, do circo pobre, por exemplo, e do seu palhaço: “O rosto pintado não é só alegoria: / a vida usa máscara dia-a-dia”- (um filosofema irônico) ou do religioso clássico. “As santas estão maquiadas, / trajadas a passeio, laqueadas:/ são retratos de mulheres/  veneradas, canonizadas”.
Dionisio é o da festa, o transgressor, o dos arroubos, da embriaguez, dos perigos, do caos. “No meio da rua a vida devassa:/ Gente em algazarra de cachaça”. Ou “A rua está louca, embriagada: / Não obedece a nenhuma lei”. Ou ainda: “É bola, bolacha, bosta, bicho:/ Na palha da feira, dentro do lixo”.
Nada de borgeios de si mesmo (Borges), nada de poesia em primeira pessoa, nada desse eu enfadonho pretensamente lutando contra a anomia quando o que quer mesmo é se exibir. Até me atrevo a dizer que o poeta fala melhor de si quando de si não fala... O poeta, aqui, olha para fora, e não escondido, mas como participante. Escreve o que está inscrito em seu corpo, que misturou com a terra e os outros.
Seu olhar, por ser de poeta, não é, por isso mesmo, um olhar passivo, no sentido em que fala Cassirer, mas construtivo. O poeta parece mesmo estar por trás de uma câmera, flagrando gestos, fazeres, formulando interpelações, possuído pelo thaumazéin, pelo espanto - condição que, para os gregos, gerava o filósofo, mas a tem igualmente a criança. É o poeta, assim, um operador de visões. Generosamente, dá-nos ele esse documentário poético.     

E ainda cria endereços da vida: “Na rua do passatempo”.
 “Nesta casa sem lona, destelhada / Mora a felicidade: gargalhada”.

A vida, afinal, pode ser um circo a céu aberto.
Dionisiaca-mente!

* Professora do Departamento de Artes da UFRN; autora de Sertania e Trapézio (poesias), Bárbara Cabarrús (romance), entre outros.