quinta-feira, 25 de março de 2010

Tango na Lua II

 
                          atriz Daniella Perez


Nas sombras mornas da tarde os pássaros encerram seu balé e executam a última sinfonia.  Um velho arvoredo é palco e aconchego, onde eles se calam, pensativos e sem aplausos. Mas, à noite, a lua desabrocha no roseiral noturno e os desperta: personifico aquele rosto maquiado por Deus e escuto a recitação de um monólogo...

Agora passo devagar, na solidão da rua, à beira o rio: a lua-cheia está mais alta, acesa como um imenso salão. Procuro teus lábios na beleza fria do momento e escuto uma orquestra que ensaia... Mas ronca cuíca, mexem-se platinelas de pandeiro e alegria doida de tamborim. É o carnaval que vem descendo, mas não tem jeito: a tristeza se estende na várzea urbana.
Há melodia escorrendo de um Bandoneón: La Cumparsita  deixa a dançarina com um pé na terra e outro na lua. Dia ou noite, qualquer passo pela casa é um Tristango, diz Pi(g)azzola.


Demoro: vagueio na larga fenda esculpida no serrote, onde um corredor de luz  se abisma. Os meus sentidos estão mais terrestres. A  lua branca, sonolenta, deita-se na ponte, que ainda se veste com a cal cinquentenária.  Há vozes nostálgicas de seresteiros: dá vontade de dançar velhos boleros latinos e tangos de Gardel, alí mesmo, sobre a grama do alagadiço salobro. Mas a frieza me afasta para o centro da cidade. Entro no casarão e escuto os violões subindo a ladeira, empurrados pelo sopro da madrugada.








domingo, 14 de março de 2010

Resto de carnaval





















Carnaval quando passa
deixa um rastro de brilho,
serpentinas em pedaços,
vêem-se troços perdidos:

sapatos salto-alto
pensos, descolados,
sem par nem donos
escorados no meio-fio.

Calçados apontam brochas
em bocas abertas de so(lados):
rostos emborcados na maré,
fileiras de dentes cariados.

Algas, anêmonas mortas,
litro vazio, bosta, cortiça:
quase tudo nada, boia
vida que se arrisca.
 

quarta-feira, 10 de março de 2010

Viandante















 a Tetê Bezerra

"Não ligo, deito sobre os trilhos, vejo o trem passar..."


Corre a vida nos trilhos:
reta estreita de perigos.
O trem passa: viandante
apontando meu destino?

Estrada: plantação de aço
cortando fugitivos passos;
o trem esmaga a solidão
que se estira, estilhaço.

Mundo andado sem pressa
em ocasos é que me deito;
escuto a voz do tempo,
esqueço que ouço apito.



terça-feira, 9 de março de 2010

Cabocla do mato

 

A pequena comunidade se dispersou dentro do mato, em meio à perseguição de dois capatazes, ordenados por  Zé  Vistoso, coronel da Fazenda Moreno Velho.  Mas uma menina se enganchou nos arbustos e cipós da mata brejeira e foi capturada.  Época em que esses povos eram chamados de “caboclos brabos”. Senhores de engenhos e fazendeiros se interessavam por eles: serviriam para os trabalhos pesados, escravizavam-nos...  O Coronel ficou esperando por seus homens de confiança, debaixo de uma jaqueira frondosa. A menina chegou assanhada, com mãos e pés cortados, de correr no mato fechado, mas não chegou tão longe…  A cunhã estava nervosa e valente: o velho quis amansá-la, alisando-a, mas foi recebido com mordidas e unhadas. “Amarrem essa pestinha, vão na frente e prendam-na no canto que sabem bem”, disse furioso. A nega Birica era uma ama de leite, que pacientemente costurava alguns vestidos, cortava seu cabelo, dava-lhe  de comer nas horas certas e  dormia com ela: obrigada à tarefa, mas sentia pena, puxava conversa e a consolava… E já não chorava como antes, tinha um rostinho triste, amedrontado, porém conformado. E já banhava-se sozinha: com o passar dos meses o velho, de vez em quando, examinava seu sexo infantil, mas se continha, à força, porque era acostumado a desvirginar mocinhas na região. Talvez a intensão fosse a costumeira: a menina seria acrescentada ao harém das parideiras.  E ela foi amansando, recebia bons tratos em meio a frustração da ruptura do seu habitat.  Quando a menina passou dos dez anos, ele não aguentou a fissura de esperar e a possuiu. E, por ordem dele,   Birica fez virgilância na porta do quarto afastado: sentada num tamborete, fumando cachimbo, permanecia em silêncio e na cumplicidade, como se ele estivesse apenas a aconselhando. Ouvia os gritos abafados que se confundiam com as vozes gerais do terreiro. Quando o coronel – de vista baixa e sonso –, abriu a porta ligeiro, estava desfigurado. A preta velha fez cara feia, arrebitou o beiço gordo, e torceu o queixo,  pois já se apegara à menina: “Velho amaldiçoado”, resmungou, pisando no cachimbo, dando rabissaca. Depois foi acudir a inocente: dá banho de ervas, chá, conselhos e outras diligências de mulher. Aos treze anos de idade foi mãe.  E de sua descendência, a bisneta dona Miró, que reproduz a história contada por sua avó. “Pegaram minha bisavó a casco de cavalo.  Por isso que no dia do índio eu subo em árvore e fico apitando, enfeitada de penas, pulseiras, lembrando dela. Até invento cantiga, assovio. A bichinha, nas mãos daquele traste! Deus me perdoe que ele também é do meu sangue…” Dona Miró tem mesmo traços indígenas: pele escura, rosto largo e triangular, cabelos pretos, longos e lisos. E afirma que se comunica, espiritualmente, com seus ancestrais.  Percebe-se em suas conversas e ações, uma forte inclinação à benzedura. É uma mulher engraçada e folclórica.  “Eu sei das coisas: rezo em gente só pelo nome, sem precisar ver a pessoa. Fiz isso numa pessoa com dor de dente, com três dias o ‘bicho’ caiu. Nunca rezei em mulher  com regras desreguladas, pra não ficar boa.  E  cabra que rouba, assassino, rezo no rastro: soube que já prenderam  muitos deles. E assim, ‘rezando’, capo também homem ruim,  que deflora moça na marra, como fez meu bisavô, coronel Zé Vistoso.