sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Fuso

 
Fuso fia fio de algodão,
noite fria fia solidão.
Filho puxa folhas de agave,
mãe estende louras cabeleiras.
À noite, labaredas na cozinha,
fornalha acesa de maravalhas.
Pavios de lã ensopados
em querosene: lamparinas.
Mulher campeira colhe fibras,
mãe-tecelã fia, ajunta filhos.

Meninos do carnaval

 
Carnaval misto de maracatu
meninos usam adereços:
roupas pesadas, cores vivas,
pedrarias, fitas, espelhos.
As vestes longas, sobrepostas
engordam corpos franzinos:
rua Bom Jesus - Recife antigo,
meninos desfilam, dançam frevo.
Monstros, pierrôs, colombinas
em blocos diurnos de Olinda:
são meninos de subúrbios
descendo ladeira, subindo. 


Cavernas milenares

Tempo e vento
cavaram nas serras
misteriosas artes
em cavernas milenares.
Serras de altas cristas
incrustadas em cristais,
crostas de lodo antigo
de banhos hibernais.
Na crista da serra
a lua se arrancha, 
desmaia, se espoja
nas pedras brancas.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Assunto de família


“Boa tarde ‘Dr. Escrivão’, aqui está o valor para exame de conferência: o restante do dinheiro pelos documentos elaborados no mês passado, quando dei minha palavra p’ra me apresentar aqui, hoje. Mas somente as horas não batem com o trato, pois os atrasos de hoje em dia são decorrentes do destempero do tempo, os dias ‘tão se indo às carreiras. Eu não devo à viv’alma dessa terra, mas precisava desses poucos dias: tempo suficiente para obter o despacho, que pela diligência do procurador e o consentimento da lei, já me declaro aposentado. Quero que ‘Vossa Excia’ passe um papel mais bem explicado que os anteriores, em nome dessa mulé, que é minha senhora: já beira uns dez anos essa união, mesmo que a contra-gosto de seus familiares. O assunto é o seguinte: como ela tem uma ‘carruagem’ de filhos e que não são nada bons! Desculpe a clareza... Estão todos espalhados no mundo, cada qual com suas moradias, mas quando vêm se chegando, em visitas de veneta, a gente observa nas caras e em certas atitudes, seus modos interesseiros: resmungam, cochicham dentro de quarto, boatam na vizinhança, piada de mau gosto, uma resposta de supetão... É comigo, principalmente, esse despautério: eles não vão com minha cara, têm ciúmes da mãe, me enchem de acusações, sou ‘isso-aquilo-outro’... É, mas não é de bom grado expor ‘causos’ particulares, enchendo seus ouvidos dentro da Vossa repartição. Eles são capacitados de tomarem, em audiência de justiça, o pouco que a gente tem, além de outras más intenções: é só pegar um advogado sabido, estudado, que vive catando desavenças entre famílias desunidas e terminam achando brechas p’ra eles saírem com ganho de questão. Enquanto ela tiver viva, tudo irá bem comigo, mas depois que se for, onde vou terminar meus dias? E em vice-versa... Mas como nós não morremos até hoje, amanhã Deus é quem sabe, que somos todos mortais, n’é mesmo? Quero abrir ‘essa letra’, feita por Vossa pessoa que é de comprovada competência. Melhor logo, antes que venha qualquer reboliço:  semana passada escutei a enteada mais nova rebolar prato, dá murro  em mesa, fez maior alarido na cozinha e meu nome entrou no meio do palavreado bruto dela, dirigindo-se à mãe…  Sou muito desgostoso disso! Pois bem, quero passar um papel registrado em livro, com severos dizeres, bem esclarecidos, do modo que ‘V. Excia’ sabe lavrar , de tanta convivência com a lei, de longo tempo em exercício nesse ofício: o beneficiado é meu filho único que vive p’ra banda do ‘sul’, só não sei nome de rua, mas é na cidade de Sorocaba,  Estado de São Paulo. Difícil é falar com ele, só à base de recado de outro familiar mais ou menos perto um do outro... E não vive muito bem: tem emprego fraco, pela falta de estudo. Mas vamos p’ra ao assunto mestre da história: a fala que vai ser assentada aí, tem que ser muito bem feita, p’ra dar exemplo de ordem, que só na justiça se acha. Ainda mais qu’eu não dou ‘ponto sem nó’.  E o sinhô sabe depois que se ‘bate das botas’, quem fica vivo procura meios de se arremediar, trava até briga de braço p’ra botar mão nalgum troço. Então o sinhô assente no livro, que Manoel Silva Procópio, é filho legítimo de Sebastião Procópio, natural do Crato, Estado do Ceará, com 71 anos de idade e de  Maria Isabel da Silva, natural do mesmo lugar, mas já é falecida. E tem como madrasta, Maria Aldonza Feitosa, aqui presente, que depois vai acrescentar mais palavras  verdadeiras, saídas da vontade dela... Tudo que for dito de minha boca, p’ro sinhô que me escuta, é p’ra ficar bem escrito,  destrinchado nos dizeres, carimbado e assinado. E o principal lembrete é p’ra que os filhos dela, aqueles perseguidores,  não tenham nenhum direito na casa, caso ela morra primeiro.
 “Pois bem Seu Escrivão”, começa a falar dona  Aldonza , mostrando-se bem distinta, cautelosa com o assunto: “Meus filhos são carrancudos e desse homem nunca se agradaram, desde o dia em que resolvemos morar debaixo das mesmas telhas, mesmo sem mal algum ter ele feito a eles. Recebe todo tipo de humilhação quando eles decidem aparecer. Já de Manoel, citado nesse ‘interregatório’, meu enteado e filho único dele, nunca me revelou um desagrado, deve ver a mãe dele em mim, da qual eu ocupo o lugar... E por acordo de nós dois, decidimos deixar essa casa só p’ra ele: único bem que temos.  Depois do falecimento de Justino Braz, homem a quem me dediquei por 30 anos, unida por matrimônio eclesiástico. Depois encontrei esse aí que se assenta em frente a nós: nunca me deu dor-de-cabeça, é homem falante, sem boatos, aceito aonde chega, calmo, sem alteração nos nervos... Só me separo dele quando a morte der  ‘as caras’  e isso é vontade de Deus”.
Apesar de os dois estarem decididos e de pleno acordo, o escrivão tem que esclarecer algumas exigências básicas da lei e pede a palavra: “Com essa imensidade de gente interessada, se requer assinaturas de herdeiros; presentes têm que estar ou por procuração passada pública, em qualquer lugar: o documento será trazido pelo ‘Correio do Brasil’, como missiva normal...” Responde seu Sebastião demonstrando decepção: “Então, assim fica adiado, embora a casa tenha custado meu suor, não vejo impedimento algum p’ra que seja feita essa vontade minha. Mas escuto ‘V. Excia’, vou comunicar a Manoel meu filho o que se sucede, e exigir pressa no seu comparecimento. Já é meado do ano, talvez que em janeiro ele se apresente ao chamado”. Prossegue a orientação do escrivão: “Aguardo mais entendimento, que a lei tem que ser aplicada certa. Mas vejo que o assunto é de pouca complicação forense, sem ajuntar muita papelada entre as partes envolvidas numa audiência. Escute bem o sinhô: quando retornar a esse tabelionato, p’ra concluir seu interesse, anote tudo do imóvel:  medição, localização, benfeitorias, confrontações e a documentação de identidade dos três envolvidos no ‘conchavo’, p’ra que comprovem as caras, mesmo que não sejam atuais em conformidade com os retratos. Além de duas testemunhas do convívio de vocês, sabedoras de suas intenções e que saibam assentar os nomes corretamente, p’ra dá mais validade à ‘letra’.  E tem mais as despesas dos selos: Custas que serão acrescentadas no valor, depois do acordo final entre as partes. Passem bem seu Sebastião e a senhora...” Responde sem aperto de mãos, guardando os papéis na gaveta... “Agradecido igualmente, tudo ‘tá bem entendido. E já que o assunto ficou meio emboloado, ainda vai passar por muito lenga-lenga, então não é preciso marcar a data da volta”.




sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Elis Regina Carvalho Costa

Elis Regina Carvalho Costa, nasceu em Porto Alegre (RS).  Nesse início de ano ouve-se falar mais dessa mulher, que  em 19/01/1982, subitamente, nos deixou.
A obra da artista, no entanto, é seu maior legado e parâmetro para muitas discussões. Elis não era o tipo da cantora com postura comercial, seu repertório é exemplo disso: comprometida com as questões sociais do seu país e consequentemente com a universalidade da problemática das pessoas. Melhor é tê-la como instrumento de pesquisa, distanciando-a do saudosismo que a envolve, causado pela comoção nacional, que talvez, gradativamente, a consuma.  No entanto, os registros póstumos acrescentados sobre à obra da cantora, têm que ser encarados como  objeto cultural, muito pouco de tietagem. Esses engajamentos e sua independência musical  são componentes, que somados à voz marcante, fascina a todos: “Amo a música, acredito que nem tudo está perdido, creio no ser humano e na renovação do planeta”, declarou.
Essa Mulher, o disco, completou 30 anos em julho de 2009, que além da música "O Bêbado e a Equilibrista" (João Bosco e Aldir Blanc), ter batido de frente com o momento político vivido em 1979, valorizou Cartola, apresentou Tunai e Sérgio Natureza e o histórico dueto de Elis & Cauby Peixoto: “Estava indo a uma entrevista, quando ele cruzou em minha frente: é esse…”, disse ao Pasquim (1979). O “Hino da Anistia” reivindicava a volta do irmão do Henfil  e a morte do jornalista Vladimir Herzog, contextualizando as mazelas da repressão militar. Além do luto que as vestia, mães-Marias tinham também corações torturados. Ouviam-se os gritos roucos ecoando dos porões, onde escorriam fecundas idéias mutiladas.
Elis, em 1979, participou do 13º Festival de Jazz de Montreux: luzes cruzam a “Noite Brasileira” e as ovações abalam o Cassino de Montreux. O Bruxo do jazz ordena ao piano, mas não intimida a Pimentinha. O show passara por algumas oscilações vocais, mas ela volta ao palco menos introspectiva, depois de “Mancada”, “Faca Amolada” e “Rebento(u)”. Despira-se do longo vermelho, busto roxo-bispo e da orquídea azul-lilás do figurino. Vozes a chamam muitas vezes: “Elis, Elis, Elis!..."  Essas e outras imposições a fazem ressurgir em cena. Os olhos nos olhos travam duelo na noite: ela atende às notas complicadíssimas de Hermeto e mantém-se indomável, invencível, cantando as canções como se cada verso se avessasse. A plateia, insistentemente, não se cansa... E, aos poucos, desvencilha-se dos aplausos que pesadamente a veste.