quinta-feira, 29 de julho de 2010

O Mestre-Sala



  Locutores espalhavam suas vozes em noticiários. O circo acampava nos aceiros de pequenas cidades, e o palhaço saía às ruas anunciando o espetáculo da noite. Vicente Celestino cantava com voz melódica e robusta. Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Augusto Calheiros e Sílvio Caldas reuniam multidões; Cauby Peixoto, Linda Batista, Marlene, Nora Ney, Isaura Garcia, Dalva de Oliveira, Ângela Maria e Elizeth Cardoso, eram as grandes vozes nacionais mais ouvidas no rádio.  Luiz Gonzaga, pernambucano de Exu,  se destacava em seu gênero musical, o forró pé-de-serra. Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo, seguia seu sucesso carioca. Flávio Cavalcanti, Ary Barroso, Abelardo Barbosa (o Chacrinha), Sílvio Santos e Hebe Camargo eram os melhores apresentadores do país. Raimundo Asfora e Ronaldo Cunha Lima, destacados oradores paraibanos. Atores de televisão e teatro eram Paulo Gracindo, Paulo Autran, Cláudio Correia e Castro, Walmor Chagas, Cacilda Becker, Fernanda Montenegro e Laura Cardoso. Comediantes eram Dercy Gonçalves, Grande Otelo, Oscarito e Mazzaropi.  O rádio era o grande comunicador; contudo, as vozes marcavam época e isso, diretamente, o influenciou.
Adonias Gomes Medeiros, 81, filho de Adauto Ezequiel (in memoriam) e Elisa Maria de Jesus (in memoriam),  falecida em maio de 2007, às vésperas de completar um centenário. Aprendera a falar ao microfone no tempo em que se ouvia difusora, e estreou na locução em período eleitoral: tudo começou na primeira campanha que marcava a emancipação política da cidade de Nova Palmeira-Pb. Em 1963 candidataram-se Severino Veriano dos Santos (in memoriam) e Eronides Vasconcelos (in memoriam) – PSB e UDN –, dando origem a uma série de comícios na cidade e na zona rural. E o ex-prefeito, conhecido como Nego Caetano, morador da mesma rua, rememorou: “Tomei posse em 01 de janeiro de 1964 a 1968, quando Nova Palmeira-Pb era um povoado com 80 casas, no máximo”.
A voz inaugural ganhou fôlego, tornou-se a mais ouvida no lugar: se pronunciava na tribuna da Câmara Municipal, angariava donativos em dia de feira, convidava o povo à  missa, enterro, passeata, cinema e demais avisos: “Eu ouvia as rádios para ir adquirindo experiência. E dizia muitas palavras erradas, fui aprendendo com o falar daqueles locutores. Não ligava com as correções, seguia adiante, sem me intimidar”, justificou. Outro serviço de locução chamado  “Voz do Município”, também era oferecido pela Prefeitura Municipal de Nova Palmeira-PB, sob a direção de Antonio Francisco dos Santos (in memoriam). As difusoras eram instaladas em cumeeiras e marquises, para melhor propagação do som. Durante passeio, em praças e calçadas, podia-se receber recados e mensagens musicais.
Ele próprio soldava os transistores de suas máquinas falantes. Nessa região ouviam-se mais as rádios  Brejuí de Currais Novos-RN, em noticiários e “mensagens”, na voz do repórter Eliel Bezerra; Caturité  de Campina  Grande e  Tabajara de João Pessoa-Pb. Os amantes do futebol ligavam-se nas rádios Sociedade da Bahia e Globo. E as moças que liam fotonovelas nas revistas Capricho, Contigo e Ilusão, colavam nas paredes, fotografias de Eva Wilma, Arlete Sales, Regina Duarte, Tarcísio Meira, Glória Menezes ... Aguçavam seus ouvidos e ouviam as novelas pelo rádio: “Irmãos Coragem” e “O Direito de Nascer...”  Mas os receptores de rádio: ABC, Campeão, Telefunken e SEMP, gradativamente, saíam do mercado, com o advento do Rádio estéreo  FM. Vitrola, Radiola, Som 3 em 1, Gravador, Vídeo Cassete, Wakman, Sister, DVD, MP3. A internet é a grande vilã da  evolução tecnológica, com diversas modalidades de som e comunicação.
A bebida sempre foi predileção, mas os rapazes do lugar a utilizavam como atração: mesa enfeitada de cerveja. Tempo de calça de Helanca, jeans Topeka com “bocas-de-sino” e nesgas, camisa de Volta ao Mundo, sapato Cavalo-de-Aço e cigarro “da praça”, Continental. Os olhos acrobatas giravam e os galanteadores se dirigiam às moças: acertavam os passos e se misturavam no salão, sob o olhar do Mestre-sala, que não demora a alfinetar laço de fita no bolso do cavalheiro, ingressando-o à dança: ninguém escapava daquela cobrança, cota. As damas da noite tinham “passagem livre” e estreavam suas roupas: vestidos de mangas bufantes, em tecido Pele de Ovo e Chemisier, com blusa Cacharrel. Cabelos altos, ondulados com laquê de breu, sobrancelhas finas, riscadas a lápis e rostos carregados de pintura. Algumas usavam perucas modeladas e brilhantes. Mas, em épocas mais atrasadas, especialmente em bailes rurais, eram obrigadas a dançar com todos os pagantes, não podiam “dá corte”, senão eram expulsas do salão. Os Suarês – como chamava a juventude à época, disposta a largar todos os afazeres –, animavam as noites de sábados e domingos. O gosto pela dança, daquela geração, começou naquele pequeno salão, onde nasciam os pés-de-valsa.  A noite de São João era muito animada e o Salão de Adonias superlotava. De madrugada, na hora de “marcar” a quadrilha, o mestre-sala exigia disciplina de pelotão militar, mas logo ouvia os gritos que avisavam a “queima” das coreografias juninas. E seguia: “Anavantú , Anarriê”.
Ele comprava todos os lançamentos do ano: Zé Calixto, Trio Nordestino, Os Três do Nordeste, Abdias, Marinez e Luiz Gonzaga. O Carimbó, cantado por Eliana Pittman,  também  foi bem aceito. Mas os sucessos de Celly Campelo foram, rapidamente, absorvidos pelos jovens: onda apelidada de Kokota. As Frenéticas, John Travolta e Olívia Newton John trouxeram um ritmo mais avassalador: a discoteca; literalmente eram Embalos de Sábado à Noite. No entanto, a Jovem Guarda, oscilava com essas transformações, mas o gosto pelo ritmo perdura até hoje: Roberto Carlos, Vanderléia, Wanderley Cardoso,Jerry Adriani, os Fevers, etc., são rememorados pela paixão nacional. Adonias, definitivamente, interessava-se pela dança de raiz,  o forró. E o disco de vinil, descartado com a chegada do CD, ainda hoje é vendido e ouvido: lembranças escavadas  dos arranhões  da "broa", com cheiro de forno antigo.
O homem e a venda: começou com uma pequena bodega, onde vendia bebidas, cereais, miudezas, gasolina, e como não havia farmácia no lugar, vendia até medicamentos: Cibalena, Cibazol, Melhoral (analgésicos) e soro antiofídico. Era ágil e versátil no que fazia: vendáveis, também, eram filmes e bailes. No salão do arrasta-pé eram exibidos os filmes, em rolos, projetados num lençol branco, pregado à parede. Depois de colar a fita partida, ele antecipava algumas cenas. Mas filme de sexo explícito jamais foi exibido, em meio às proibições e limitações gerais da época.  Quando atores trocavam carícias, ele punha a mão à lente de projeção, mesmo que obedecendo a lei da censura, quanto à entrada de menores. De fato, causava descontentamento ao o público masculino adulto, que queria ver aquelas mulheres semi-nuas e carnudas:

“Antes, eu tinha que assistir aos filmes e ter idéia do roteiro. Havia fiscalização e eu ficava atento às cenas mais ‘pesadas’; ainda mais porque as legendas, geralmente, eram em inglês e eu adiantava algumas delas, para o povo ir entendendo a história”, acrescentou.

A paixão de Cristo era vista em silêncio, com muito respeito. Exibida na cidade e na zona rural, muitos imaginavam que fossem cenas reais, raríssimas pessoas sabiam da indústria cinematográfica. Ainda hoje ouve-se do público: “Esse é o Jesus de verdade”, embora não fosse ele um ator;  protagonizou  a história que mudou a humanidade. A platéia se emocionava e a maioria das mulheres chorava muito, como fizeram as moradoras de Jerusalém. “Já exibi filmes por toda a região: em cidades e sítios vizinhos, até no Cine de Picuí-Pb, dirigido por Aldomário. E, depois de seis anos, com o avanço da tecnologia, resolvi parar com a atividade”.
Os canais de televisão, que além das novelas, se diversificavam com melhores programações e  imagens, sobretudo, porque o cinema estava em cada casa; junto com a TV a cores, o advento do vídeo cassete e da antena parabólica, gerando a escassez de público.
Não tinha a fama de um grande inventor; no entanto, ganhou popularidade, quando o povo teve acesso às imagens protagonizadas por Teixeirinha, Mary Terezinha, John Weyne, Django, Charles Chaplin, Sophia Loren, Giuliano Gemma, Gigliola Cinquetti, Charles Bronson e outros astros nacionais e hollywoodianos. “Um Dólar Furado”, “O Ébrio”, “Travessia de Cassandra”, “O Grande Ditador”,  "Dio Come ti Amo", "Meu Ódio Será sua Herança", "Dois Homens em Conflito" e muitos outros faroestes, são os filmes mais lembrados:  “Tenho admiração pelo ator Alex Prado” – acrescentou Adonias, que ao invés de filme de rolo, possui um DVD do ídolo.
Não era uma pessoa comprometida com a cultura, mas foi se misturando, convivendo com a informação. Agora, a música se esconde no quarto de dormir, que mesmo sem erudição, se ritualiza: sossega seu espírito em meio à zoada (sono)ra. As máquinas, até hoje, não podem parar: o microfone no pedestal e fios interligados a auto-falantes e antigas difusoras:  “O som de Adonias está ligado” –  dizem os vizinhos.
Em 1969, na primeira candidatura de Bento Coelho Pessoa, nasce o homem público, optando por seguir em linha reta, evitando a tortuosidade da mentira,  demagogia e corrupção: vestimenta característica de alguns políticos. Havia força e expressividade em seus dizeres, argumentava suas idéias com domínio e mantinha-se seguro na oratória; época em que não se ouvia, de nenhuma distância, a voz do povo. Adonias Gomes, o vereador, destacava-se na Câmara Municipal "José Bezerra", onde era visto com respeito, chegando à presidência daquela por um período de quatro mandatos, seguidos de uma prorrogação de dois anos, somando dezoito anos de atuação. Ali ele falava em tom maior; sua voz era um instrumento de denúncia.

“Durante esse tempo de vida pública tive dois mandatos sem remunerações, porque o poder Legislativo era vinculado à Prefeitura; não tinha recursos próprios. Cheguei a ser apelidado de "espinha de garganta", quando eu não votava alguns projetos considerados anticonstitucionais. Explicava isso aos demais vereadores, que desconheciam a lei, e terminávamos chegando ao acordo. Mas, por outro lado aprovei, aproximadamente, quatrocentos deles, a bem da comunidade, porque sempre estive ao lado do povo, não de prefeitos”.

Como reconhecimento unânime do Poder Legislativo, na gestão de 2008, o aposentado foi homenageado com o título “Plenário Adonias Gomes", e na ocasião rememorou sua atuação naquela casa: “No dia em que eu assumi meu primeiro mandato, ao sentar à cadeira, senti-me como um menino em suas  lições primeiras, um aprendente da carta de ABC, porque nada entendia. Mas fui me interessando e aprendendo, simplificou.
Honestidade e honradez: ele andava lado a lado com essas virtudes, representava uma safra de homens sérios, esses que  foram secando, se extinguindo pelas eras politiqueiras, dando origem a uma geração de políticos, demasiadamente, relapsos e corruptos em administrações afora, cevados pela prática da promiscuidade política, que tanto macula a sociedade brasileira e que perdura até os dias de hoje. E que mesmo havendo algumas cassações, essas punições pouco diluem a disseminação desses males; um ciclo vicioso que talvez nunca se feche; amparam-se na justificativa de que estas mazelas são secularmente praticadas.
Mas Adonias não teve uma passagem pública repudiada por esses desconcertos; admiravam-no como legítimo representante de sua comunidade. E falarão mais dele, mas de alguém que acrescentou e isso será seu maior legado.



Imagem: loscorotos.wordpress.com

quinta-feira, 8 de julho de 2010

O passarinho
O pardal desce a escadaria e busca a mesa: belisca nozes, pão de centeio e poucas uvas verdes, mas retorna ao quarto, pela mão estendida de Sarapo. Minutos  depois, o pássaro miúdo e franzino, bico entreaberto, pia(f) e cala-se.  Estava no repouso dos Alpes, não sob uma marquise ou  qualquer lar que lhe fora oferecido por piedade. Era aquele pássaro que criou-se cantando sob os arvoredos das ruas parisienses e que ganhou o nome de Môme Piaf, escrito por Laplée; tornando-se o grande pássaro da canção francesa, sob os cuidados de Asso, que a conduziu  como Edith Piaf. À luz da cidade amada, Paris a viu na amargura e no glamour; no entanto, acordou de luto: morte ocorrida nos arredores de Grasse, a poucos quilômetros de Paris, em 10/10/1963. Insistia em cantar: quando não podia subir ao palco, levavam-na nos braços. E foi-se, assim, de lábios secos, querendo beber a última canção.