terça-feira, 17 de agosto de 2010

Duelo matinal

1.
Coreografia de espadas
mãos em duelo matinal;
tecelãs penteiam madeixas,
batem a cinza do sisal.
Mulheres campeiras
lambem foices, comem folhas,
baçaço, colhem cabeleiras.

2.
As fibras são vísceras
tomando banho de lua
escorrendo nos varais;  
espantalhos sem corpos:
saias dançando valsa
na corda-bamba, orixás.

3.
Na feira do sábado
a corda bruta enrola-se
à pele de sacos e fardos;
na festa do prado:
voar de serpentes
laçando cavalos.

4.
Cordas/correntes:
de enforcamento
de salvamento;
cabrestos de condenados,
aviamentos, adereços
em tornozelos de escravos.

5.
Vassouras são diaristas
espanando chão/céu da casa;
brancas escravas, bruxinhas
sem poderes nem asas,
escondidas atrás da porta: 
sujas, tristes, sozinhas.

domingo, 15 de agosto de 2010

Quando adormece a lua louca


A tarde daquele dia fora mais tensa: a mulher estava molhada de suor, arranhava-se; a boca seca espumava, escondendo o  Herpes; pronunciava nomes estranhos, supostamente de entidades do candomblé e dezenas de palavrões habituais, aparentemente possessa. Os irmãos se alvoroçavam tentando segurá-la sem brutalidade, mas ela caiu sobre os calhaus do terreiro e sofreu um raso corte no couro cabeludo. E dava passadas largas, pulos, querendo entrar no juremal e cair no precipício das barreiras: escavações feitas por antigas correntezas. O pai não hesitou em amarrá-la à cama de varas; depois jogou água fria na cabeça e pó de café no ferimento; pôs-se a rezar orações fortes: Credo em cruz, rosário apressado e um palavreado que expulsa espíritos malignos. Entregou-lhe uma caneca de chá de erva-cidreira, que ela arremessou na parede de taipa e um cheiro de terra molhada subiu do barro aguado. Mais tarde, à noite, depois da reza, ela estava menos agitada, mas ainda se impacientava: olhava com olhos mais acesos, porém, menos ligeiros, investigando as dimensões do quarto esburacado: depósito onde se dispensa  lixo e solidão. Chegou a comida feita sem muito zelo: hora dela praguejar aquele que lhe entrega o prato...
É flagrada coberta de um roseiral exagerado de molambos emprestados, que além da sebentice, se agacham à procriação: baratas, grilos e carochas. O cabelo é um antro de parasitas, avolumando-se sobre a cabeça miúda, e os olhos marinhos amanhecem, diariamente, delineados de lágrimas e barro; maquiada pelas unhas de um “carrasco”... Os lugares limpos, que mesmo sendo de uma casa humilde, foram-lhe negados: construiu-se esse, desmembrado, junto ao chiqueiro dos porcos, afastando-a do convívio familiar.
A noite parecia ser uma grande várzea, de onde minavam veios de luar. E luas meladas, também eram avistadas nos olhos pacientes do cachorro Charel: abandonara o jeito bandoleiro; apenas cumprimentava as fêmeas no cio; zelava o território sinalizado pelo cuspe da mulher e desaprendera a zanga dos cães vigilantes e ferozes. Quando ela passava, carrancuda, ele estirava a língua comprida, tentando, carinhosamente, alcançar suas canelas cinzentas e arranhadas, mas era desprezado.
Numa noite incendiou o sinistro aposento; mataria os insetos do convívio, e imaginários visitantes, invasores da memória. O quarto era um esconderijo sem porta, onde ela pouco permanecia, e quando a noite era de lua clara e a “lua da inquietação” já adormecera, ela despia-se e atirava-se à estrada rural, ao vento, cantarolando velhos boleros; os que dançara com o homem que perdera... Além da liberdade fugaz das estradas, a louca nua orbitava na misticidade da noite; imaginava que a lua loura fosse o planeta da mudança, e que um dia voaria para lá, como fez o ‘Pequeno Príncipe’ em seus projetos espaciais.  
Mas, no raiar do dia, ela deixa os ninhos improvisados e volta, arranhada, descalça, tonta de sono, nas portas dos vizinhos, pedindo água, café e novamente cai no calabouço do abandono.
E com o passar dos dias, deu-se a cavar barrocas e fechar a estrada com pedras, galhos e facheiros. Depois começou um exercício diário de cortar lenha, roçar o mato mais baixo, abrindo caminho na caatinga: “Medo faz ela cansar-se  demais e esgotar-se das últimas forças; vai-se assim até chegar em Caicó?”, disse o pai, ao vê-la sumir na trilha estreita e desalinhada. Não atinava em amolar a foice carcomida, que já sem curvatura, criara dentes no gume, retardando o avanço do projeto: pôs-se a quebrar cipós, não lhe interessava a estética do caminho. Não dirigia-se mais às rotas conhecidas, inconscientemente, esquecia as veredas esquisitas do lugar, onde tanto se perdera...
E, um dia ela não voltou do roço, alcançou a BR e chegou à cidade: esmolambada, quase nua, pele descascada do sol, pés rachados e furados de xiquexiques, cambaleando de fome, como uma cabra velha, perdida no pasto alheio. O cabelo arrepiado, desbotado, afogueado, cor de “burro quando foge”: um emaranhado de folhas secas e flores azedas de catingueira. A mulher tísica oscilava entre o hilário e o triste: “Essa coitada devia está pescando piaba ou plantando capim, atolada em bojos rasos de açude ou vem cruzando serras, fugitiva de uma longa  servidão”, diziam os que conversavam, no cair da tarde, sentados debaixo das algarobas. 
O pai cansou de ir buscá-la, à força; pedia a ambulância ao prefeito e carros a conhecidos, mas ela sempre fugia do sítio. Agora queria as cores das casas, os vestidos das mulheres, os cigarros jogados no meio-fio, os copos louros de cerveja e os irrisórios presentes que ganhava. Contudo, a andarilha foi aceita pela maioria dos moradores da  Macondo paraibana acertou com o bebedouro público, de água salobra, mas evitava banhar-se: mergulha nos poços fétidos dos esgotos que deságuam; onde ao invés de limpar-se, unta-se de lama e lodo; entra na cidade com o aspecto de uma guerreira tribal. Mulher de eterno silêncio; às vezes, quebrado por eventuais crises de desaforos;  impõe respeito apenas com a presença fuçada e desgrenhada, transitando como qualquer cidadã.
Acostumou-se a sorrateiras invasões domiciliares: abre torneiras, recolhe lixo, mija, caga, e naturalmente, sai de cabeça erguida, sem olhar para os estragos, como se vivesse num mundo sem ética, costumes, normas e leis. Deu-se a selecionar o lixo amontoado nas ruas: litros, facas, garfos, pilhas, sacos, latas, óculos, bijuterias descascadas e fedorentas. Despeja frascos com resto de Alfazema sobre  os cabelos tesos, e espreme os desodorantes nas axilas barbudas: urbanizada lição de vida. Mas começou a andar pesada de cordões, colares, pulseiras, anéis e relógios: balangandans somente usados pela cantora Carmem Miranda. Não usa chapéu nem turbante, mas arrisca-se em caminhar sobre sandálias Plataforma, resvalando nos paralelepípedos; vestido lânguido, batom lambuzado, unhas vermelhas e sujas, carregando o sol na cabeça. Ninguém a ouve cantar enquanto escuta a zoada da cidade; a  louca nua se esquece de se encontrar com a lua, derramada nas calçadas, nascida agora, tão perto, na esquina alta da avenida; respira o ar citadino: mistura-se à multidão das festas municipais, missas, comícios, passeatas e moto-lama. Demora à frente de bares, atraída pelo som histérico dos carros. A cidade não sobrevive sem palhaço, bode expiatório e “bobo da corte”, mas somente as pessoas do lugar são avacalhadas pela rapaziada; portanto, nenhum apelido pejorativo foi atribuído à querida intrusa, que caminha “linda e loura”.