a Ivam Cabral e Ricardo Soares
“Amanhã vou lavar roupa no olho d’água; dia de acordar cedo pra botar água em bacia”– disse a mãe. “Tou de corpo quente, rasguei o lombo do pé num arame enferrujado de alpercata”, respondeu o menino, fazendo sua defesa vesperal. Mas as lavadeiras madrugavam e no raiar do dia desceram a ladeira, cruzaram as pedras ocas, o quebra-cabeças e o passadiço. Ruínas d'uma tapera eram também amontoado de recordações... Os astros tinham os mesmos rostos, mas em outubro via-se uma promessa de chuva: uma caraibeira os saudou com flores amarelas derramadas na vereda; agave e macambira pendoando. Exilados estão os pássaros?
Ave de rapina - sonsa e solitária - sonda... O menino passou o dia com os pés atolados na água azeda e salobra do olho d’água; ao meio dia queixava-se de febre, comeu curimatã. Fermentação de mijo de jias, cabras e reses; boiavam ovos de cágado, teju e camaleoa; todo bicho babava no único bebedouro das secas: olho a encher-se de milágrimas, onde suja lua ancorava, banhava-se na retina. Ouvia-se a fala do olho d'água, alma também tinha; zoada de vasilhas e chocalhos, vai e vem de mulheres entoando cantigas com suas cabaças... Latas-d'água na cabeça eram jóias mareadas; meninos quase aleijados, carregando os patíbulos dos galões; açoitados iam-se os jumentos: barris eram ogivas amarradas às cangalhas.
Nascera entre duas serras, amado era por todos os sedentos; tão salgado que cortava o sabão em pedra, uma coalhada que escorria dos lavatórios por entre a grama selvagem. Lençóis e redes, no quarador, eram pátrias ensaboadas; saias de cinelite e blusas de lamê maretavam; molambos de toda cor pareciam florescer os xiquexiques; com zelo maior lavavam as roupas brancas – submersas peças nupciais –, que demoravam na alquimia d’uma bacia de anil: em mastros de jurema eram bandeiras imaculadas. E tropeiros se arranchavam na várzea-dormitório: especiarias brejeiras derretiam-se, adoçando o salitre; chão aromado de aguardente. À noite caçadores iam-se a matar, e de madrugada lavavam os bisacos ensanguentados; cães arrastando vísceras e cabeleiras, lambendo luas desmioladas de crânios e carapaças. Talvez os últimos bichos da caatinga: partilha, covardia, brasa acesa de manhã. As tabocas que rodeavam o poço, serviam de tocaia às aves perdidas e loucas, arribadas de outras emboscadas. Naquele ano a ventania levou as cumeeiras dos alçapões e aterrou os quixós.
Os banhos rurais eram programados: fendas de pedras e moitas escondiam os nus da sexta-feira... Não fora cavado pelos moradores nem herdeiros ousavam proibir a demanda da água. O mar estava alí: mínimo olho-oceânico; em raros invernos vestia-se de musgos. E jaçanãs retornavam ao poço quando rebentavam os Água-pés. Misterioso moinho movia a água, em silêncio: poço universal.
Imagem: arquivo do autor
Imagem: arquivo do autor
Muito bom, querido, adorei! Abraço grande, Ivam Cabral
ResponderExcluirOlá Ivam! É uma satisfação de encontrar aqui no olho do Sol... Bebamos dessa água, mesmo que seja salobra ou temos que dessalgar o mar. Abç
ResponderExcluirOlá, Borges, você fala poetica-mente como quem realmente conhece e sente aquilo de que fala. A intimidade com esse chão de bichos e cacimba/poço/olho d´água salta à flor do texto.
ResponderExcluirLevou-me pra lá...Toda!
Abraços.
Nivaldete, amiga Mil: talvez, enfadados, estejam os leitores das cacimbas salobras, dos sodoros, dos falares reditos, de uma nordestinização apelativa. Então bebamos neste poço universal.
ResponderExcluirNivaldete, ainda hoje li um comentário a respeito do meu livro Imagens Eternas, feito por um membro da coordenação do curso de Letras. E fala de sua apresentação "Marca D'água": uma linda imagem!
ResponderExcluirborges, falaste poeticamente dos meus bicho de pé que pequei na cacimpa que meu pai cavou pra tomar banho e beber agua limpa.Parabéns pela clareza aquática das aguas dos corregos que te levam a escrever lindamente.
ResponderExcluirBem vinda! Satisfação em te receber aqui. Eu fazia serenata, à beira da revência, acordando a água... Eu cantanva e a cacimba chorava.
ResponderExcluirLindo poema q vc tão bem traduz, fazendo a gente voltar no tempo e lembrar da realidade vivenciada no nosso "sublime torrão". Àgua, fonte da vida, que quero dela sempre beber!!! Bjs e Parabéns.
ResponderExcluirOi Cristina, visite sempre o Sol. Obg amiga
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