segunda-feira, 6 de junho de 2011

Olho D'água

a Ivam Cabral e Ricardo Soares

“Amanhã vou lavar roupa no olho d’água; dia de acordar cedo pra botar água em bacia”– disse a mãe. “Tou de corpo quente, rasguei o lombo do pé num arame enferrujado de alpercata”, respondeu o menino, fazendo sua defesa vesperal.  Mas as lavadeiras madrugavam e no raiar do dia desceram a ladeira, cruzaram as pedras ocas, o quebra-cabeças e o passadiço. Ruínas d'uma tapera eram também amontoado de recordações...  Os astros tinham os mesmos rostos, mas em outubro via-se uma promessa de chuva:  uma caraibeira os saudou com flores amarelas derramadas na vereda; agave e macambira pendoando. Exilados estão os pássaros?
Ave de rapina - sonsa e solitária - sonda... O menino passou o dia com os pés atolados na água azeda e salobra do olho d’água; ao meio dia queixava-se de febre, comeu curimatã. Fermentação de mijo de jias, cabras e reses; boiavam ovos de cágado, teju e camaleoa; todo bicho babava no único bebedouro das secas: olho a encher-se de milágrimas, onde suja lua ancorava, banhava-se na retina.  Ouvia-se a fala do olho d'água, alma também tinha; zoada de vasilhas e chocalhos, vai e vem de mulheres entoando cantigas com suas cabaças... Latas-d'água na cabeça eram jóias mareadas; meninos quase aleijados, carregando os patíbulos dos galões; açoitados iam-se os jumentos: barris eram ogivas amarradas às cangalhas.
Nascera entre duas serras, amado era por todos os sedentos; tão salgado que cortava o sabão em pedra, uma coalhada que escorria dos lavatórios por entre a grama selvagem. Lençóis e redes, no quarador, eram pátrias ensaboadas; saias de cinelite e blusas de lamê maretavam; molambos de toda cor pareciam florescer os xiquexiques; com zelo maior lavavam as roupas brancas – submersas peças nupciais –, que demoravam na alquimia d’uma bacia de anil: em mastros de jurema eram bandeiras imaculadas. E tropeiros se arranchavam na várzea-dormitório: especiarias brejeiras derretiam-se, adoçando o salitre; chão aromado de aguardente. À noite caçadores iam-se a matar, e de madrugada lavavam os bisacos ensanguentados; cães arrastando vísceras e cabeleiras, lambendo luas desmioladas de crânios e carapaças. Talvez os últimos bichos da caatinga: partilha, covardia, brasa acesa de manhã. As tabocas que rodeavam o poço, serviam de tocaia às aves perdidas e loucas, arribadas de outras emboscadas. Naquele ano a ventania levou as cumeeiras dos alçapões e aterrou os quixós.
Os banhos rurais eram programados: fendas de pedras e moitas escondiam os nus da sexta-feira... Não fora cavado pelos moradores nem herdeiros ousavam proibir a demanda da água. O mar estava alí: mínimo olho-oceânico; em raros invernos vestia-se de musgos. E jaçanãs retornavam ao poço quando rebentavam os Água-pés. Misterioso moinho movia a água, em silêncio: poço universal.

Imagem: arquivo do autor