Tempo e vento cavaram nas serras misteriosas artes em cavernas milenares. Serras de altas cristas incrustadas em cristais, crostas de lodo antigo de banhos hibernais. Na crista da serra a lua se arrancha, desmaia, seespoja nas pedras brancas.
“Boa tarde ‘Dr. Escrivão’, aqui está o
valor para exame de conferência: o restante do dinheiro pelos documentos elaborados
no mês passado, quando dei minha palavra p’ra me apresentar aqui, hoje. Mas
somente as horas não batem com o trato, pois os atrasos de hoje em dia são decorrentes
do destempero do tempo, os dias ‘tão se indo às carreiras. Eu não devo à viv’alma dessa terra, mas precisava desses poucos dias: tempo
suficiente para obter o despacho, que pela diligência do procurador e o
consentimento da lei, já me declaro aposentado. Quero que ‘Vossa Excia’ passe um
papel mais bem explicado que os anteriores, em nome dessa mulé, que é minha
senhora: já beira uns dez anos essa união, mesmo que a contra-gosto de seus familiares.
O assunto é o seguinte: como ela tem uma ‘carruagem’ de filhos e que não são
nada bons! Desculpe a clareza... Estão todos espalhados no mundo, cada qual com
suas moradias, mas quando vêm se chegando, em
visitas de veneta, a gente observa nas caras e em certas atitudes, seus modos
interesseiros: resmungam, cochicham dentro de quarto, boatam na vizinhança,
piada de mau gosto, uma resposta de supetão... É comigo, principalmente, esse
despautério: eles não vão com minha cara, têm ciúmes da
mãe, me enchem de acusações, sou ‘isso-aquilo-outro’...
É, mas não é de bom grado expor ‘causos’ particulares, enchendo seus ouvidos dentro
da Vossa repartição. Eles são capacitados de tomarem, em audiência de justiça, o
pouco que a gente tem, além de outras más intenções: é só pegar um advogado sabido,
estudado, que vive catando desavenças entre famílias desunidas e terminam achando brechas
p’ra eles saírem com ganho de questão. Enquanto ela tiver viva, tudo irá bem
comigo, mas depois que se for, onde vou terminar meus dias? E em vice-versa... Mas
como nós não morremos até hoje, amanhã Deus é quem sabe, que somos todos mortais,
n’é mesmo? Quero abrir ‘essa letra’, feita por Vossa pessoa que é de comprovada
competência. Melhor logo, antes que venha qualquer reboliço: semana passada escutei a enteada mais nova
rebolar prato, dá murro em mesa, fez
maior alarido na cozinha e meu nome entrou no meio do palavreado bruto dela,
dirigindo-se à mãe… Sou muito desgostoso
disso! Pois bem, quero passar um papel registrado em livro, com severos dizeres,
bem esclarecidos, do modo que ‘V. Excia’ sabe lavrar , de tanta convivência com
a lei, de longo tempo em exercício nesse ofício: o beneficiado é meu filho
único que vive p’ra banda do ‘sul’, só não sei nome de rua, mas é na cidade de
Sorocaba, Estado de São Paulo. Difícil é
falar com ele, só à base de recado de outro familiar mais ou menos perto um do
outro... E não vive muito bem: tem emprego fraco, pela falta de estudo. Mas
vamos p’ra ao assunto mestre da história: a fala que vai ser assentada aí, tem
que ser muito bem feita, p’ra dar exemplo de ordem, que só na justiça se acha. Ainda
mais qu’eu não dou ‘ponto sem nó’. E o
sinhô sabe depois que se ‘bate das botas’, quem fica vivo procura meios de se
arremediar, trava até briga de braço p’ra botar mão nalgum troço. Então o sinhô
assente no livro, que Manoel Silva Procópio, é filho legítimo de Sebastião
Procópio, natural do Crato, Estado do Ceará, com 71 anos de idade e
de Maria Isabel da Silva, natural do
mesmo lugar, mas já é falecida. E tem como madrasta, Maria Aldonza Feitosa,
aqui presente, que depois vai acrescentar mais palavras verdadeiras, saídas da vontade dela... Tudo
que for dito de minha boca, p’ro sinhô que me escuta, é p’ra ficar bem escrito, destrinchado nos dizeres, carimbado e
assinado. E o principal lembrete é p’ra que os filhos dela, aqueles
perseguidores, não tenham nenhum direito
na casa, caso ela morra primeiro.
“Pois bem Seu Escrivão”,
começa a falar dona Aldonza , mostrando-se bem distinta, cautelosa com o
assunto: “Meus filhos são carrancudos e desse homem nunca se agradaram, desde o
dia em que resolvemos morar debaixo das mesmas telhas, mesmo sem mal algum ter ele feito a
eles. Recebe todo tipo de humilhação quando eles decidem aparecer. Já de Manoel,
citado nesse ‘interregatório’, meu enteado e filho único dele, nunca me revelou
um desagrado, deve ver a mãe dele em mim, da qualeu ocupo o lugar... E
por acordo de nós dois, decidimos deixar essa casa só p’ra ele: único bem que
temos. Depois do falecimento de Justino
Braz, homem a quem me dediquei por 30 anos, unida por matrimônio eclesiástico.
Depois encontrei esse aí que se assenta em frente a nós: nunca me deu dor-de-cabeça,
é homem falante, sem boatos, aceito aonde chega, calmo, sem alteração nos
nervos... Só me separo dele quando a morte der
‘as caras’ e isso é vontade de
Deus”.
Apesar de os dois estarem decididos e de pleno
acordo, o escrivão tem que esclarecer algumas exigências básicas da lei e pede
a palavra: “Com essa imensidade de gente interessada, se requer assinaturas de herdeiros;
presentes têm que estar ou por procuração passada pública, em qualquer lugar: o documento será trazido
pelo ‘Correio do Brasil’, como missiva normal...” Responde seu Sebastião
demonstrando decepção: “Então, assim fica adiado, embora a casa tenha custado
meu suor, não vejo impedimento algum p’ra que seja feita essa vontade minha.
Mas escuto ‘V. Excia’, vou comunicar a Manoel meu filho o que se sucede, e
exigir pressa no seu comparecimento. Já é meado do ano, talvez que em janeiro
ele se apresente ao chamado”. Prossegue a orientação do escrivão: “Aguardo mais
entendimento, que a lei tem que ser aplicada certa. Mas vejo que o assunto é de
pouca complicação forense, sem ajuntar muita papelada entre as partes
envolvidas numa audiência. Escute bem o sinhô: quando retornar a esse
tabelionato, p’ra concluir seu interesse, anote tudo do imóvel: medição, localização, benfeitorias,
confrontações e a documentação de identidade dos três envolvidos no ‘conchavo’,
p’ra que comprovem as caras, mesmo que não sejam atuais em conformidade com os
retratos. Além de duas testemunhas do convívio de vocês, sabedoras de suas
intenções e que saibam assentar os nomes corretamente, p’ra dá mais validade à ‘letra’.
E tem mais as despesas dos selos: Custas
que serão acrescentadas no valor, depois do acordo final entre as partes. Passem
bem seu Sebastião e a senhora...” Responde sem aperto de mãos, guardando os papéis
na gaveta... “Agradecido igualmente, tudo ‘tá bem entendido. E já que o assunto
ficou meio emboloado, ainda vai passar por muito lenga-lenga, então não é
preciso marcar a data da volta”.
Elis
Regina Carvalho Costa, nasceu em Porto Alegre (RS). Nesse início de ano ouve-se falar mais dessa mulher, que em 19/01/1982, subitamente, nos deixou.
A
obra da artista, no entanto, é seu maior legado e parâmetro para muitas
discussões. Elis não era o tipo da cantora com postura comercial, seu repertório é exemplo
disso: comprometida com as questões sociais do seu país e consequentemente com a
universalidade da problemática das pessoas. Melhor é tê-la como instrumento de
pesquisa, distanciando-a do saudosismo que a envolve, causado pela comoção
nacional, que talvez, gradativamente, a consuma. No entanto, os registros póstumos
acrescentados sobre à obra da cantora, têm que ser encarados como objeto cultural, muito pouco de tietagem. Esses
engajamentos e sua independência musical são componentes, que somados à voz marcante, fascina a todos: “Amo a música, acredito que nem tudo está
perdido, creio no ser humano e na renovação do planeta”, declarou.
Essa
Mulher, o
disco, completou 30 anos em julho
de 2009, que além da música "O Bêbado e a Equilibrista" (João Bosco e
Aldir Blanc), ter batido de frente com o momento político vivido em 1979, valorizou
Cartola, apresentou Tunai e Sérgio Natureza e o histórico dueto de Elis & Cauby
Peixoto: “Estava indo a uma entrevista, quando ele cruzou em minha frente: é
esse…”, disse ao Pasquim (1979). O “Hino da Anistia” reivindicava a volta do
irmão do Henfil e a morte do jornalista Vladimir Herzog, contextualizando as
mazelas da repressão militar. Além do luto que as vestia, mães-Marias tinham
também corações torturados. Ouviam-se os gritos roucos ecoando dos porões, onde escorriam fecundas idéias mutiladas.
Elis,
em 1979, participou do 13º Festival de Jazz de Montreux: luzes cruzam a “Noite Brasileira” e as ovações abalam
o Cassino de Montreux. O Bruxo do jazz ordena ao piano, mas não intimida a
Pimentinha. O show passara por algumas oscilações vocais, mas ela volta ao
palco menos introspectiva, depois de “Mancada”, “Faca Amolada” e “Rebento(u)”.Despira-se do longo vermelho, busto roxo-bispo e da orquídea azul-lilás do
figurino. Vozes a chamam muitas vezes: “Elis, Elis, Elis!..." Essas e outras
imposições a fazem ressurgir em
cena. Os olhos nos olhos travam duelo na noite: ela atende às
notas complicadíssimas de Hermeto e mantém-se indomável, invencível, cantando
as canções como se cada verso se avessasse. A plateia, insistentemente, não se
cansa... E, aos poucos, desvencilha-se dos aplausos que pesadamente a veste.