A pequena comunidade se
dispersou dentro do mato, em meio à perseguição de dois capatazes, ordenados
por Zé
Vistoso, coronel da Fazenda Moreno Velho. Mas uma menina se enganchou nos arbustos e
cipós da mata brejeira e foi capturada. Época
em que esses povos eram chamados de “caboclos brabos”. Senhores de engenhos e
fazendeiros se interessavam por eles: serviriam para os trabalhos pesados,
escravizavam-nos... O Coronel ficou
esperando por seus homens de confiança, debaixo de uma jaqueira frondosa. A
menina chegou assanhada, com mãos e pés cortados, de correr no
mato fechado, mas não chegou tão longe… A
cunhã estava nervosa e valente: o velho quis amansá-la, alisando-a, mas foi recebido com mordidas e unhadas. “Amarrem essa pestinha, vão na
frente e prendam-na no canto que sabem bem”, disse furioso. A nega
Birica era uma ama de leite, que pacientemente costurava alguns vestidos, cortava
seu cabelo, dava-lhe de comer nas horas
certas e dormia com ela: obrigada à tarefa, mas sentia pena, puxava conversa e a consolava… E já não chorava
como antes, tinha um rostinho triste, amedrontado, porém conformado. E já banhava-se
sozinha: com o passar dos meses o velho, de vez em quando, examinava seu sexo
infantil, mas se continha, à força, porque era acostumado a desvirginar
mocinhas na região. Talvez a intensão fosse a costumeira: a menina seria
acrescentada ao harém das parideiras. E ela foi amansando, recebia bons
tratos em meio a frustração da ruptura do seu habitat. Quando a menina passou
dos dez anos, ele não aguentou a fissura de esperar e a possuiu. E,
por ordem dele, Birica fez virgilância na porta do quarto afastado: sentada num
tamborete, fumando cachimbo, permanecia em silêncio e na cumplicidade, como se ele
estivesse apenas a aconselhando. Ouvia os gritos abafados que se confundiam com
as vozes gerais do terreiro. Quando o
coronel – de vista baixa e sonso –, abriu a porta ligeiro, estava desfigurado.
A preta velha fez cara feia, arrebitou o beiço gordo, e torceu o queixo, pois já se apegara à
menina: “Velho amaldiçoado”, resmungou, pisando no cachimbo, dando rabissaca. Depois foi acudir
a inocente: dá banho de ervas, chá, conselhos e outras diligências de mulher. Aos
treze anos de idade foi mãe. E de sua
descendência, a bisneta dona Miró, que reproduz a história contada por sua avó. “Pegaram
minha bisavó a casco de cavalo. Por isso
que no dia do índio eu subo em árvore e fico apitando, enfeitada de penas,
pulseiras, lembrando dela. Até invento cantiga, assovio. A bichinha,
nas mãos daquele traste! Deus me perdoe que ele também é do meu sangue…” Dona
Miró tem mesmo traços indígenas: pele escura, rosto largo e triangular, cabelos
pretos, longos e lisos. E afirma que se comunica, espiritualmente, com seus
ancestrais. Percebe-se em suas conversas e ações, uma forte inclinação à benzedura. É uma mulher engraçada e folclórica. “Eu sei das coisas: rezo em gente só pelo
nome, sem precisar ver a pessoa. Fiz isso numa pessoa com dor de dente, com
três dias o ‘bicho’ caiu. Nunca rezei em mulher
com regras desreguladas, pra não ficar boa. E cabra
que rouba, assassino, rezo no rastro: soube que já prenderam muitos deles. E assim, ‘rezando’, capo também
homem ruim, que deflora moça na marra,
como fez meu bisavô, coronel Zé Vistoso.