Às 10:30h eu estava entrando no Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa-Pb. Dercy estava sentada no centro do palco, dirigindo a montagem do cenário: volumosas cortinas prateadas. Entre conversas e fotos, o encontro durou uma hora. Entreguei-lhe um texto entitulado "Dercy: novent'anos é flor", que ela rapidamente assegurou: "Isso daqui vai para o meu museu em Santa Maria Madalena". À noite retornei para ver o show e todo mundo derreteu-se em risadas. Sentado na primeira fila, uma bolsinha brilhava sobre uma poltrona, a meu lado, e minha amiga ousou abrir: estava recheada de notas de R$ 100,00, e que pertencia à artista, a qual foi imediatamente entregue. Dercy vinha do tempo das vedetes, do teatro rebolado, da Praça Tiradentes (Rio), época em que essas artistas eram vistas como prostitutas: "eu tinha até carteirinha...", enfatizou. As famílias não podiam ver o show de Dercy, o que fez a comediante passar 40 anos renegada: "Hoje todos me aplaudem, chamam tudo isso de arte", delira. Mas o palavrão não era devassidão, este estava mais ligado à sobrevivência; o povo tinha que rir de qualquer maneira, e consequentemente movido pelo humor que brotava do talento de Dercy, que nasceu Dolores: "Parece nome de puta espanhola". O show contava toda a sua trajetória artística, desde o dia em que fugiu da terra natal, quando escondeu-se debaixo de um vagão de trem, mas os cães a denunciaram... Tentava alcançar um grupo de teatro mambembe. Cantora de igreja, vendia ingressos no cinema local e pintava os olhos como as atrizes do cinema mudo. Não queixava-se da vida, brincava com o passado: "Aprendi a viver como as galinhas, ciscando, ninguém me ensinou nada, pô". Da vida dura pelos palcos afora, até se erguer como comediante respeitada, passou por "poucas e boas": "A vida inteira trabalhei apenas para sobreviver, hoje é que trabalho para viver". Nessa época, há mais de anos, eu havia ido ao Rio, e quando eu passava em frente à casa de espetáculos, o Canecão, lia-se: "Canecão apresenta Dercy Gonçalves". E como a vida inteira eu quis conhecer aquele fenômeno, jurei a mim mesmo: vou encontrar essa danada... E chegou o dia do encontro e da risadagem, muito mais de lição de vida da maior marginal do teatro.
Imagem: arquivo pessoal
Imagem: arquivo pessoal
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