sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Rei do agreste


 
a Geraldo Maciel, in memoriam

                    
Ele guardava a fome da semana e chegava sorrateiro e pousudo.  E, em suas garras afiadas,  misturava inhaca e restos de caules  da manhã. Gostava de comer carne de galinhas e frangos cevados em chiqueiro, mas podia segurar  qualquer tola, que displicentemente beliscasse o pasto. Felinto sabia desses sumiços ousados,  mas se enfureceu quando viu o rastro  marcante do ladrão: um raio de sangue se arrastava entre  as manjeronas,  ensopando o feno incrustado de coroas de carrapichos. Era a maior denúncia, além dos vestígios que voavam sobre os xiquexiques, deixados pelas vítimas. Evitava se banquetear com as carnes deliciosas das aves: serviriam para complementar outras precisões maiores. O habitual era comer feijão macassar com rapadura e rejeitos bovinos. Às vezes ele puxava o pescoço de uma galinha mais velha, infecunda, rota de botar ovos. E o manda-chuva do terreiro, um dia seria subestimado pelos solteirões, que tentavam tomar posse do harém: essas rebeliões demonstravam o enfraquecimento daquele que estava há três anos no  reinado, além das deficiências normais da velhice. Diante desses subterfúgios, o galo morreria em qualquer manhã e um outro se assentaria no trono sujo dos poleiros, cantaria com a voz mais robusta e aprenderia a agalinhar suas antigas esposas. Mas naquele dia Felinto apressou-se em fazer a vistoria no terreiro:  aninhou os pintos debaixo das chocas, recolheu os machos  e trancou-os num galpão, prendeu mais de vinte donzelas no local de costume e sentenciou: “Esse ladrão, assassino vai ter o troco que merece", saiu dizendo a caminho do roçado. Quando voltou, engoliu o almoço às pressas: começou a lavar a ferrugem do cano da espingarda, medir os diâmetros das rolimãs, a quantidade de pólvora e socou com uma vareta de aço toda munição necessária. E, para não revelar seu plano com tiroteios exagerados, naquela mesma tarde, testou o poder de fogo da velha carabina:  espetou um alvo improvisado na ponta aguda de uma estaca, recarregando-a para o dia da tocaia. A presença do invasor estava no ar e os sete dias, contados a partir do último estrago causado pelo carnívoro, já se completara. Mas tinha que acordar cedo e controlar os nervos, por que ladrão não avisa qual a arma que conduz nem a hora do ataque... No primeiro claro do dia, tomou um café mal coado e acendeu um cigarro “pé-de-burro”, feito de fumo de rolo, bem forte: as baforadas embebedam mosquitos e fazem vomitar até as tripas... Assentou-se num tamborete e não esperou muito tempo para avistar o pouso boçal do malfazejo, por quem as encarceradas deviam sentir atração, com suas visões lerdas e destorcidas. Trazia na elegância a estirpe de uma autoridade de alta patente militar, disfarçando sua instintiva violência. Seguro e pacientemente se coçava, tirava os ciscos que aderiram às penas do “casaco Sobretudo” e amolava as unhas compridas. Já lançara o olhar hipnotizador para o interior do chiqueiro, calando os bicos tensos das galinhas,  que tremiam  sob  o perigo.  Os cafifes migravam do antro e negrejavam em sua direção, tentando alcançar suas canelas: a coceira louca seria um castigo hilário, não corrigiria os hábitos de um fascínora, mas frustraria o plano do atirador. Estavam reunidas, mas não tinham fôlego nem tempo para consenso de assembléia: aos poucos, elas iam relembrando as companheiras que foram arrastadas pelo impostor. Mesmo no desespero, continham-se sem alvoroço: não se tratava, portanto, de uma invasão domiciliar, onde um jovem ousado e apaixonado, furtaria uma moça... De frente para o inimigo, porém, com a sensação covarde de ocultar-se, Felinto respirou profundo, fechou um olho e se posicionou, antes que o falso galanteador levasse para o mato, a franga mais carnuda do chiqueiro. De uma fresta mais aberta da porta desconchavada, sem dobradiças, apoiou o cano, mirou e apertou o gatilho, que fora várias vezes lubrificado. O gavião-galã podia desentrelaçar e arrancar algumas varas do chiqueiro– o que não faziam os maracajás nem as raposas sonsas –, e fazer sua refeição à sombra das catingueiras ou de frondosas umburanas, mas não teve chance: sentiu o tórax  incendiar e afundar-se com o peso do tiro fedorento e premeditado. O coquetel letal de explosivos, substituía a raiva daquele homem. O gavião era um rei destronado: o papo estava se vazando, estraçalhado, se emborcara sobre o peito cravado de chumbo. O bico roliço, afiado, forte como marfim, pingava: caíra de asas abertas sobre o teto das prisioneiras. As unhas rajadas se encolhera e o topete carnavalesco, cinza-claro, se despenteara. Voava com imponência e tinha a maestria de um exímio caçador de pássaros e preás. Felinto assassinou o equilibrista e mestre do vento: lançava seu olhar infalível para baixo e escutava o canto das galinhas se mexendo em capoeiras, oitões e currais.  Admirado e temível, demarcara seu território: pensava em sobrevoar outras freguesias da redondeza e cinicamente arrombaria outros chiqueiros. Depois de cada crime matinal, preferia um reinado recluso entre serras e penhascos, donde escutava os latidos vorazes dos cães e tiros de caçadores.  Os gaviões, frequentemente, rondavam os  arredores do terreiro e o agricultor prometeu a si mesmo vingar-se, intensificando as vigílias. Era preciso competir para sobreviver, desconhecia qualquer regra ecológica: “Quem disso cuida, disso usa”... E um ladrão sabe que um dia será flagrado, preso ou morto, mas o gavião também tinha as mesmas razões de Felinto...  Resolveu medir e pesá-lo: pisou na ponta de uma asa, esticou o bicho e a outra ponta passou de sua cabeça, que sem o chapéu podia medir um metro e setenta centímetros de altura. A tigela d’água começou a ferver e logo despiram o rei do agreste, que vestia lindas penas acinzentadas. Depois seria eviscerado à vista - não de peritos ou embalsamadores reais - , dos filhos pequenos e madrugueiros de Felinto: todos estavam admirados e alegres com a morte da celebridade, que pesou o equivalente a qualquer frango do terreiro. O gavião bem temperado, cheirava na panela de barro. Ficou igualmente gostoso às galinhadas de passadas datas extraordinárias... Dificilmente de almoços dominicais.





sábado, 21 de novembro de 2009

Galos coroados

 

















A crista que amanhece
carrega o sol (re)encarnado:
estrela coroando trovador.
Quando o galo morre
os raios de sol desfalecem
sobre os olhos de bolandeira.
Ouve-se a ruptura do universo,
onde explosão de sangue
coagula-se na galáxia da carne.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Bibi (en)canta


Quando Bibi Ferreira excursionou pelo país com a peça Piaf, nos deu oportunidade de assistir um dos trabalhos mais bem idealizados da dramaturgia. O Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa-PB, superlotou e as canções que mais  me marcaram naquela noite, foram L'Accordéoniste e Le Vie en Rose. A forte presença cênica da atriz  emocionou a plateia, embalada pelo irretocável repertório: Milord, Padam Padam, La Foule, Non je ne Regrette Rien e o antológico Hymne à L'amour.
Piaf, o espetáculo, cumpriu sua temporada em Paris, onde viveu Édith Piaf. A cantora faleceu nos arredores de Grasse, em outubro de 1963, aos 47 anos. Da amargura à glória: a menina ór(fã) que tinha as ruas como palco, à margem do glamour parisiense, tornou-se ícone de la chanson française.
Não pude reencontrar Bibi Ferreira In Concert nem quando rememorou a fadista Amália Rodrigues. Estranha forma de vida, Fado da saudade, Coimbra, Lisboa e Nome de Rua, são referências da canção portuguesa. Esses musicais  só foram apresentados nos grandes centros do país e ao público das maiores capitais do nordeste, como Recife e Fortaleza, dificultando a acessibilidade dos admiradores mais distantes. 
O longo vestido negro guardava o corpo miúdo de pássaro: o nome Piaf  veio do próprio canto e suas canções atenuaram os dissabores da França do pós-guerra: "flutuava como um Beija-flor na rosa..." 
Bibi plural: (en)canta (Piaf, Chico, Amália...), interpreta, compõe, toca piano e dirige... É comovente e bonito vê-la em suas incorporações teatrais, onde se ouve, também, a fala das mãos.