Ele guardava a fome da semana e chegava sorrateiro e pousudo. E, em suas garras afiadas, misturava inhaca e restos de caules da manhã. Gostava de comer carne de galinhas e frangos cevados em chiqueiro, mas podia segurar qualquer tola, que displicentemente beliscasse o pasto. Felinto sabia desses sumiços ousados, mas se enfureceu quando viu o rastro marcante do ladrão: um raio de sangue se arrastava entre as manjeronas, ensopando o feno incrustado de coroas de carrapichos. Era a maior denúncia, além dos vestígios que voavam sobre os xiquexiques, deixados pelas vítimas. Evitava se banquetear com as carnes deliciosas das aves: serviriam para complementar outras precisões maiores. O habitual era comer feijão macassar com rapadura e rejeitos bovinos. Às vezes ele puxava o pescoço de uma galinha mais velha, infecunda, rota de botar ovos. E o manda-chuva do terreiro, um dia seria subestimado pelos solteirões, que tentavam tomar posse do harém: essas rebeliões demonstravam o enfraquecimento daquele que estava há três anos no reinado, além das deficiências normais da velhice. Diante desses subterfúgios, o galo morreria em qualquer manhã e um outro se assentaria no trono sujo dos poleiros, cantaria com a voz mais robusta e aprenderia a agalinhar suas antigas esposas. Mas naquele dia Felinto apressou-se em fazer a vistoria no terreiro: aninhou os pintos debaixo das chocas, recolheu os machos e trancou-os num galpão, prendeu mais de vinte donzelas no local de costume e sentenciou: “Esse ladrão, assassino vai ter o troco que merece", saiu dizendo a caminho do roçado. Quando voltou, engoliu o almoço às pressas: começou a lavar a ferrugem do cano da espingarda, medir os diâmetros das rolimãs, a quantidade de pólvora e socou com uma vareta de aço toda munição necessária. E, para não revelar seu plano com tiroteios exagerados, naquela mesma tarde, testou o poder de fogo da velha carabina: espetou um alvo improvisado na ponta aguda de uma estaca, recarregando-a para o dia da tocaia. A presença do invasor estava no ar e os sete dias, contados a partir do último estrago causado pelo carnívoro, já se completara. Mas tinha que acordar cedo e controlar os nervos, por que ladrão não avisa qual a arma que conduz nem a hora do ataque... No primeiro claro do dia, tomou um café mal coado e acendeu um cigarro “pé-de-burro”, feito de fumo de rolo, bem forte: as baforadas embebedam mosquitos e fazem vomitar até as tripas... Assentou-se num tamborete e não esperou muito tempo para avistar o pouso boçal do malfazejo, por quem as encarceradas deviam sentir atração, com suas visões lerdas e destorcidas. Trazia na elegância a estirpe de uma autoridade de alta patente militar, disfarçando sua instintiva violência. Seguro e pacientemente se coçava, tirava os ciscos que aderiram às penas do “casaco Sobretudo” e amolava as unhas compridas. Já lançara o olhar hipnotizador para o interior do chiqueiro, calando os bicos tensos das galinhas, que tremiam sob o perigo. Os cafifes migravam do antro e negrejavam em sua direção, tentando alcançar suas canelas: a coceira louca seria um castigo hilário, não corrigiria os hábitos de um fascínora, mas frustraria o plano do atirador. Estavam reunidas, mas não tinham fôlego nem tempo para consenso de assembléia: aos poucos, elas iam relembrando as companheiras que foram arrastadas pelo impostor. Mesmo no desespero, continham-se sem alvoroço: não se tratava, portanto, de uma invasão domiciliar, onde um jovem ousado e apaixonado, furtaria uma moça... De frente para o inimigo, porém, com a sensação covarde de ocultar-se, Felinto respirou profundo, fechou um olho e se posicionou, antes que o falso galanteador levasse para o mato, a franga mais carnuda do chiqueiro. De uma fresta mais aberta da porta desconchavada, sem dobradiças, apoiou o cano, mirou e apertou o gatilho, que fora várias vezes lubrificado. O gavião-galã podia desentrelaçar e arrancar algumas varas do chiqueiro– o que não faziam os maracajás nem as raposas sonsas –, e fazer sua refeição à sombra das catingueiras ou de frondosas umburanas, mas não teve chance: sentiu o tórax incendiar e afundar-se com o peso do tiro fedorento e premeditado. O coquetel letal de explosivos, substituía a raiva daquele homem. O gavião era um rei destronado: o papo estava se vazando, estraçalhado, se emborcara sobre o peito cravado de chumbo. O bico roliço, afiado, forte como marfim, pingava: caíra de asas abertas sobre o teto das prisioneiras. As unhas rajadas se encolhera e o topete carnavalesco, cinza-claro, se despenteara. Voava com imponência e tinha a maestria de um exímio caçador de pássaros e preás. Felinto assassinou o equilibrista e mestre do vento: lançava seu olhar infalível para baixo e escutava o canto das galinhas se mexendo em capoeiras, oitões e currais. Admirado e temível, demarcara seu território: pensava em sobrevoar outras freguesias da redondeza e cinicamente arrombaria outros chiqueiros. Depois de cada crime matinal, preferia um reinado recluso entre serras e penhascos, donde escutava os latidos vorazes dos cães e tiros de caçadores. Os gaviões, frequentemente, rondavam os arredores do terreiro e o agricultor prometeu a si mesmo vingar-se, intensificando as vigílias. Era preciso competir para sobreviver, desconhecia qualquer regra ecológica: “Quem disso cuida, disso usa”... E um ladrão sabe que um dia será flagrado, preso ou morto, mas o gavião também tinha as mesmas razões de Felinto... Resolveu medir e pesá-lo: pisou na ponta de uma asa, esticou o bicho e a outra ponta passou de sua cabeça, que sem o chapéu podia medir um metro e setenta centímetros de altura. A tigela d’água começou a ferver e logo despiram o rei do agreste, que vestia lindas penas acinzentadas. Depois seria eviscerado à vista - não de peritos ou embalsamadores reais - , dos filhos pequenos e madrugueiros de Felinto: todos estavam admirados e alegres com a morte da celebridade, que pesou o equivalente a qualquer frango do terreiro. O gavião bem temperado, cheirava na panela de barro. Ficou igualmente gostoso às galinhadas de passadas datas extraordinárias... Dificilmente de almoços dominicais.
Muito bom, bonito seu conto. Você sempre crescendo... Um abraço.
ResponderExcluirSuas palavras grandes vão me animando. E escrever vai se misturando ao viver. Bjs iluminados de dezembro.
ResponderExcluirChequei mergulhando no seu espaço virtual, ao mesmo tempo que lhe parabenizo pelo livro Romarias e imagens eternas.
ResponderExcluirMeu amigo Carlinho, muito importante para mim tê-lo como visitante. Repasse para os amigos, o link, comente. Abç
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