segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Boca de Fogo


Dona Salvina ganhou casa nova na cidade, mas vive querendo voltar a morar no sítio. Casa de barro batido, construída ao pé da serra, cisterna na lateral (antes água salgada de cacimba) e a liberdade da vida campestre, sem ruas de casas numeradas, perigo à cada esquina limitando os passos. Nasceu, criou-se e viveu no cariri . Diz que não teme a ataques de abelhas, formigas, raposas nem de cães bandoleiros rondando o terreiro, quando está povoado por galinhas: gaviões maiores, frequentemente, pousavam no chiqueiro e roubavam essas aves. Não dá ouvidos ao assombro das notícias: assaltos na região, principalmente a agricultores aposentados. É simplista em dizer: “Isso é conversa, ladrão tem em todo canto, na minha casa não vão não”. Nenhum mal acontece (ainda bem). Os filhos ficam buzinando em seus ouvidos: “tome o remédio (duas pílulas diárias) na hora certa”. E ainda não cessaram as transferências de troços em desuso: latas estampadas e coloridas de panetones, bolachas, bombons, lembranças de antigos presentes, que enfeitavam paredes e atajés. Os hábitos rurais também a acompanharam, não cumpre nenhuma regra citadina. Tarde dessas chegou com uma caixa cheia de roupas amofambadas nos últimos vinte anos, misturando desculpas: “Tenho saudades das roupas que meus filhos vestiam quando crianças”. Disse que eram retalhos em retângulos, quadrados e tiras de tecidos, para confecção de tapetes, estolas e cobertores. Isso sim, porque na cidade não se usa roupa remendada: a cidade é quem precisa deles, na costura dos buracos administrativos.
E por lá ficou, desmoronando, uma máquina de pé da marca Singer: o que é de ferro permanece, mas o móvel (de madeira) virou um colméia de cupins. Chico Modesto, seu esposo de 85 anos, hesita em voltar ao sítio que tanto se esforçou para comprá-lo na década de 60: muitos quilos de minérios – colombita, chapa, bloco, berilo - bois cevados e duas vacas-matrizes e leiteiras, completaram a quantia da compra e se dirigiu ao cartório para lavrar a escritura. “Não posso mais com os serviços pesados”. A coluna vertebral não aguenta mais os feixes de capim e lenha, os sacos cheios das colheitas. Mas ele pouco reclama, embora se veja que ele sofre os reflexos da idade avançada. Desfez-se de uma parte de terra em troca de um aparelho de televisão, com antena parabólica. A maioria dos agricultores tem eletrodomésticos com o advento da energia elétrica rural, mas está decidido: “Ela querendo volte, eu fico na 'rua' com meus filhos, daqui para o cemitério”. Dona Salvina insiste: “Qualquer dia vocês vão ver um caminhão parado à porta, levando meus troços. Ninguém vai impedir”.
Na casa da cidade tem pia de mármore, água corrente, chuveiro...  Evita usar o fogão a gás, com quatro bocas, exigiu um fogão à brasa, atribuindo preço alto do bujão e confusão no manuseio dos botões com sinalizações complicadas: "Esse danado engole um bujão todo mês. Quero um fogão à brasa". Depois de pronto acendeu duas ou três vezes e desprezou-o, querendo construir uma área de serviço: “E quero outra 'boca-de-fogo' maior, feito com mais capricho. E um espaço maior para essas coisas, a casa é muito apertada”... E mais alguns palavrões do cotidiano. Está lá, a "boca aberta", pedindo brasa, sem saber o que é fogo nesse inverno. Fogão-lareira? Ela alega que irá aumentar o consumo de carvão com a ventania que descamba da serra, já pensando numa "boca de fogo" menor: “Vou comprar daqueles fogões d'antigamente, feitos por louceiras. Aí terá fogo aceso, carne de sol na brasa. Por isso que é melhor morar em sítio. O fogão de lá é alto,  duas bocas de ferro, labaredas clareando a cozinha". Diante dos subterfúgios e com tantas "bocas" apagadas, supõe-se que falta comida à mesa. Frequentemente rememora os cansativos fazeres rurais, lutas infindas, domésticas: "Gosto de buscar lenha seca, gravetos pra fazer fogo, água limpa de beber ... Ah, meu terreiro rodeado de rosas dália, benedita, margarida, chorão, boa noite, nove horas!...”
Por isso que à frente da casa da cidade, tem até flor plantada entre paralelepípedos. Latas e vasilhas cheias de “comigo ninguém pode”, espirradeira, lírio e jasmim, que não se pode nem passar pelo pequeno terraço. A casa fica à beira da estrada estadual, a leste, rua de aceiro - um corredor ecológico na micro-região da serra da Borborema – caminho migratório de jibóias, tatus, tamanduás e gatos selvagens. Anos atrás via-se até jaguatirica.
Não escuta nenhum conselho nem faz acordo e suas reclamações são cansativos sermões e intermináveis ladainhas.

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