a Marcelo Amorim
Homem que sonhou com botija, marcou encontro com o desconhecido na porta do Mercado São José, no Recife antigo. Aquele mistério lhe impacientava, mas se manteve calado à espera da suposta pessoa do além. Um camelô ficou olhando aquele homem de poucos movimentos, sem ação, perdido na cidade: "O senhor já tem muitas horas aí parado, tem rosto amarelo de fome e olhos murchos de cansado, se carece de ajuda, responda sem cerimônia". O sol por trás dos casarões deixava as ruas debaixo de sombra. À frente das lojas de miudezas e cosméticos, vendedores anunciavam as últimas promoções e ambulantes gritavam o preço das bugigangas importadas do Paraguai, muito poucas de Maimi.
O sertanejo comeu tapioca com coco e milho cozido com manteiga da terra. Depois respondeu sem rodeio, porque segredo torna o fardo mais pesado. Não pensou em consequências: "Duas noites se passaram, depois de um sonho, daqueles que o sujeito jura ser verdade. Uma criatura sisuda - vestia calça comprida como essa, diferente apenas nas bocas frouxas e agitadas -, disse-me que minha sorte estava aqui no mercado, mas não falou se era dentro nem fora. Mandou-me ter pressa nas pernas, viesse em qualquer transporte... E já mostrei muito minha cara, de tanto ir e voltar, a todos esses vendedores e suas clientelas, mas ninguém me conhece por cá: nada aconteceu ontem nem hoje. E olhe que vim de longe (mas só fazia apontar...). Sou homem de poucas coisas e não preciso de tanto. Mas essa promessa me levantou as orelhas, por isso avancei nas léguas e demoro nessas horas, mas só espero por hoje. A sorte vem quando quer, tem jeito de gente lerda".
Antes que ele terminasse o falatório, o camelô resolve lhe tirar as esperanças, talvez penalizado com aquele homem acocorado, de pés roliços de inchaço, que de vez em quando estirava a ossada, com gesto de penitente: "Isso não existe, vá cuidar dos afazeres, que eu sei de história igual. Aconteceu comigo mesmo e garanto que era voz limpa, imitando gente viva, sem ter a fala enrolada,de gente de outras terras. Moro no bairro da Encruzilhada e assim que me deitei, a cabeça ficou zonza: dita voz me dizia que havia um tesouro em sítio distante daqui, e me daria por dono, sem confusão de herdeiros. Disse-me a voz doadora, que eu me apeasse em Caruaru, seguisse para o norte em estrada de barro, que antes de um serrote branco havia cinco umbuzeiros; virasse à direita e caminhasse em linha reta cinco léguas ao poente... Coisa dada é mais difícil! Apontou a direção, sem dizer nome de município nem marcou o canto certo, ficou para ser descoberto pela pessoa donatária: encontraria uma pedra graúda, cor de galinha pedrez, onde uma cabra nativa costuma se deitar. Debaixo da pedra a botija, com objetos brilhosos como o sol. Só não fez dar nome às peças, dizer quantidade nem valor. Aí calou-se de vez, apagou-se como coisa acesa. E toda manhã bem cedo chego aqui nesse mercado: abafado, cheirando à sola curtida, jabá, plantas e cascas de chá, temperos e incensos de candomblé. Mas de vez em quando me afasto um pouco: farejo o mar aí perto, olho os navios estrangeiros descarregando no cais e algumas pernas roliças que estufam das mini-saias. Esse é um negócio de pouca venda, mas faço feira desse apurado. Esse boato de riqueza fácil é assunto já encerrado. Ia eu me perder pelo mato, sem ter o canto traçado por linhas certas? Deu-me isso 'de boca', talvez já tenha dado a outro da redondeza, morador mais precisado - há poucas braças da botija -, também sem papel passado. E caçadores esfomeados já devem ter matado a cabra...”
O sangue subiu às faces daquele que estava descorado: "É, isso é mesmo ilusão, já vou deixar o mercado", apressou-se o viajante bebendo o resto d'água morna do cantil. Entrou na rua Direita, em direção à rodoviária do cais de Santa Rita, porque acabara de escutar do camelô – da boca de pessoa viva, vendo a língua se mexer, sem embaraço de sonho –, as referências necessárias: o sítio, a pedra e a cabra eram o cenário da sorte tão esperada. O lugar era seu pasto, passado a papel de escritura, caminho de todo dia, na divisa de Princesa, aceiro de Pernambuco. Ao chegar em casa não esbanjou alegria, animou, discretamente, o rosto. E cinco bois cevados moveram a pedra a chicotadas bem dadas, daquelas que deixam os lombos ensaguentados e os pescoços com calos, peladuras e marcas de cangas. Cavou dois metros de chão e arrancou um caixote feito de madeira de lei, enrolado com tiras grossas de borracha e batido com prego caibral. Um machado foi usado para abrir a lenha do "baú" e as moedas deslizavam das brechas, como milho debulhado, desabando pelas bocas dos silos. Por
debaixo do colarinho de sua camisa de mescla, sobre o peito tostado pelo sol
nordestino, descia um rosário de contas brancas e azuis. E a tarde ardente já
se aninhava nos lombos das serras, quando ele ajoelhou-se e rezou, ali mesmo,
no pedregulho misturado de ouro. Não pensou em vaidades citadinas: entrou no galpão e guardou mais de duzentos quilos de moedas, em quatro barris, junto com cangalhas, arreios,
cabrestos e outros acessórios. Entrou no curral, cortou palma e abasteceu
cocheira. Já anoitecendo, debaixo do pé de jabuticaba, pôs-se a banhar-se numa
bacia de ágata, com sabão caseiro, feito de sola cáustica e vísceras. É
chamado à mesa: branca de leite, amarela de xerém. E dele não se escutou
alaridos, festejos, anúncios nem alegrias esfuziantes daqueles que enriquecem. A
mulher obedecia às mesmas discrições e os dois filhos adolescentes não ousariam
divulgar a novidade na vizinhança escassa, mas podiam trocar alguns cochichos e
inibidos sorrisos. Descansou uma semana: selou um burro de raça e duas mulas de
força, depois de encherem a pança com pasta de caroços de algodão. Dividiu o
peso das moedas em quatro sacos de estopa, misturadas com castanhas de caju e
dirigiu-se à cidade de Caruaru-PE. Traria novas moedas convertidas, com bustos
atualizados, porque aquelas exumadas, tinham em suas faces bustos e brasões imperiais, mesmo que no início do século XX, o Brasil já estivesse sob e domínio inovador da República e as marcas do império estavam (des)enterradas. O brasão e o selo do país estavam iluminados pelas estrelas do Cruzeiro do Sul.
OI, Francis, Você publicou onde mais esse belo conto?... Lembro de já ter lido... (falta vc modificar aquela configuração... Continua aparecendo o alerta...). Um grande abraço.
ResponderExcluirParece que a prosa acendeu mais a poesia, ou em vice-versa. A princípio era um ensaio que foi revisado... Obrigado por ter gostado do contado.
ResponderExcluirVoz de robô: "Configuração feita com sucesso"(risossssssss).
Gosto de como você escreve por duas razões. Primeiro, pelo Brasil que tem nisso tudo, por dentro e por fora, e porque leio sem precisar saber da história. Texto bom, pra mim, é isso. Mesmo se não acontecer nada, leio com gosto, porque a própria escrita já é um acontecimento.
ResponderExcluirSuas palavras são constantemente animadoras. Seu nome brilha, junto às moedas, viu?
ResponderExcluirFrancis, agora vi!!! Putz, tinha passado batido pela legenda da imagem, ô correria sem sentido. Se eu te agradecesse aqui com alguma palavra que fosse estaria mentindo, porque estou sem palavras ;-) Um grande abraço, amigo.
ResponderExcluirBom que vc viu, sem grilo: "outros outubros virão..."
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