terça-feira, 22 de setembro de 2009

Morte no cosmo


Chamam-na de morte – substantivo abstrato, contrário de vida –, mas está viva e solta por aí, anônima no mundo, agindo na surdina com seus crimes, promovendo chacina e holocausto. Condenada por todos, mas sem mandado de prisão decretado, apenas o retrato falado da imaginação... É mulher que não se prende, Morte que nunca morre.
Entre todos os viventes da terra, apenas o homem sabe que morrerá. É a brecha que temos para trabalharmos a interioridade. A expectativa da morte é de aniquilamento, caos que se converte em lição de vida: “se as flores soubessem que morreriam num curto espaço de tempo, jamais nasceriam” – disse-me um filósofo conhecido, antes de subir os degraus da eternidade. De onde vem a morte – inimiga oculta que amedronta – que nos alerta com a morte dos outros? "Velha da Foice" – o apelido – , perdura até hoje em brincadeiras de terror e nas revelações das cartas de tarô: foice-símbolo, gesto de carrasco, agouro.
Nos crimes contra a humanidade e outras perversidades, a morte não foi mentora, porque ela habita na região brutal dos homens nem a lâmina da guilhotina desaba do céu. A morte não tem nenhum plano, por depender do plano dos vivos. A morte está por aí atormentando a vida, surpreendendo, seqüestrando, matando até quem está em perfeito estado de saúde. Doente grave pede para morrer, implora por sua compaixão, mas ela não perde a pose de superiora e responde em silêncio: "Não chegou a hora", parece deusa de um planeta macabro. Inimigo furioso deseja a outro: "ah, se tu morresses!” E em situações parecidas, ouvimos: "Para esse criminoso só a morte traria paz à rua”, "ele procura a morte”e “na morte somos todos iguais”. Boêmio canta, fuma e se embriaga: “Bebo sim, estou vivendo, / Gente que não bebe está morrendo...”
O amanhã é imprevisível e o mais são curiosidades, dúvidas que nunca se confirmarão, nos mistérios que envolvem vida e morte, porque uma depende da outra, coexistem. Não haveria portanto, o preto sem o branco... Os céticos não hesitam em dizer: "morreu, acabou-se". E os mais esportivos com o assunto ironizam: "Quem morreu não veio nos contar...". Esquecem, portanto, que Cristo conversou com os apóstolos depois de sua morte: "Sou eu, vejam as chagas"... E ao longo dos seus ensinamentos enfatizava a ressurreição: “Aquele que crer em mim, ainda que esteja morto viverá”, “Na casa do meu pai há muitas moradas”. Ladrões mutuamente se acusam no desespero da cruz: “Cala-te, não vês que morremos pelos nossos crimes?”  E ouve de Jesus a promessa de vida após a morte: “Ainda hoje estarás comigo no paraíso”. De tão temível, a algoz fez o próprio Cristo sentir angústia e abandono à hora última, chamando pelo pai: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" O sumo sacerdote alertou: “É preciso que só um homem morra, para que todos não pereçam".
Nas páginas que iniciam o livro “Memórias de Adriano”, da escritora belga Marguerite Yourcenar, o Imperador Ellius Adriano escreve ao amigo Marco Aurélio, falando de sua saúde sob os cuidados do médico Hermógenes: “Perdoo a esse bom servidor a tentativa de ocultar-me da morte. Podemos morrer a qualquer instante, mas um enfermo sabe que não estará vivo em dez anos.” O poema que se segue é uma epígrafe do livro, que tem conotação dantesca, atenuada pela beleza dos versos: “Pequena alma, terna e flutuante, hóspede e companheira do meu corpo, vais descer aos lugares pálidos, frios e nus, onde terás de renunciar aos jogos de outrora.”
Em todos os casos, a morte personificada, é uma serpente traiçoeira, sorrateira, cercando e nos assustando em meio a acontecimentos do cotidiano: gripe, febre, cirurgias, viagens e todo tipo de incidente/acidente. Morte-mulher-imaginária, monstro-criatura lendária, nome repetido em noticiários, assassina diária dos seres vivos. Crimes encomendados de morte involuntária, alguém decide a morte dos outros, que deixa de ser uma guerreira voraz das brenhas do universo – bruxa sisuda, assustadora, golpe certeiro –, para se aliar às decisões humanas, terrenas, nos levando a pensar que não é a Morte quem decide a morte.
Em atestado médico lemos que a causa mortis foi morte natural: pneumonia, parada cardiorespiratória, traumatismo craniano, asfixia, falência múltipla dos órgãos. Indivíduo que teve morte violenta, é submetido à necropsia: enforcamento, acidente na estrada, homicídio, overdose... Mas são modalidades do acontecimento, por que morte é qualquer uma: é um fato, fatalidade, conseqüência. Morre-se a partir do nascimento, como contagem regressiva. Um adágio popular simplista resume essas avaliações: "morreu quem estava vivo". Durante uma cerimônia de casamento – perante a convidados –, ouve-se a declaração que pretende assegurar a união: “até que a morte nos separe”. E segundo a crença popular – fato comprovado –, não deve se casar duas irmãs no mesmo dia porque uma delas morrerá.
Uma história de amor que terminou em tragédia, envolve duas famílias tradicionais de Verona, Itália. A rivalidade entre Capuletos e Montecchios, do dramaturgo inglês William Shakespeare, leva Romeu e Julieta ao suicídio. “Oh, minha única filha, reanima-te, olha para mim, ou deixa-me também morrer contigo! Estes lábios e a vida há muito tempo separados já estão. A morte se acha sobre ela como geada mui precoce sobre a flor mais gentil de todo o campo” – clamam o senhor e senhora Capuletos. Mas Julieta apenas está narcotizada, aparentemente morta e ao despertar, depara-se com a inacreditável cena de Romeu, morto, no mesmo túmulo e se deixa traspassar por um punhal. Morte planejada é aquela que o sujeito decide, voluntária: suicídio. Se desligasse os aparelhos, a morte aliviaria o sofrimento de alguém desenganado pela medicina: eutanásia. A pior delas é aquela que vem súbita, mansa, rápida, implacável, levando também os que ficam... Mas tudo são suposições, vãs afirmações, indagações de simples mortais peneirando seus remorsos, porque ninguém vem invisivelmente nos matar, morremos como mudança de estrela cadente, sozinhos sob o olhar paterno de Deus, que ordena: “Morrerás somente uma vez”, polemizando a tese sobre a reencarnação, defendida pela comunidade espírita.
Se a morte fosse essa mulher solitária, maquiavélica, arma em punho, promovendo atrocidades, seria uma rainha poderosa e covarde, deusa diabólica dominando o cosmo e a humanidade, discípula de malignas falanges espirituais, subestimando o poder absoluto de Deus.
Disse-me um pensador antes de morrer: "A morte ninguém a imagina bela, porque só o mal lhe traduz. E noutra dimensão é um trancelim de ouro maciço, com novelos cintilantes de néctar, cravejados de flores de diamantes magnéticos, amarrados nos dedos de Deus, que resgata as almas, guiadas pelos colibris luzentes da aurora boreal. Nós somos sinais luminosos, partículas falantes, onde a foice é imaginária e a morte é cósmica".

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