Minha avó amanhecia insatisfeita, mas dirigia-se à cozinha, fogo acendia: “hoje eu tô rim, rim chamada rim”... "Ruim, doente do rim, vó?" Dizia: “Não, tô rim da cabeça. Amanheci de macacoa”. E emendava nas queixas: “Hoje eu tô bêba, bêba chamada bêba(da)”. E ia-se devagar, mãos nas paredes, resmungando pela casa-labirinto, teto-sótão desabando. Longa viuvez. Era tontice, zoada nos ouvidos, se instalando naquela mulher octogenária, de tantos serviços domésticos e rurais. Diagnósticos de hoje: labirintite, pressão alta, diabete... Eram desabafos dosados de chantagens, compensações.
Gente conhecida passando na estrada, indo à cidade, mandava parar: "Vê se chegou carta do sul, que há tempo não recebo notícia de filho".
Mas vinham as brincadeiras, dizeres e adágios populares: “Da palma nasceu palmito, / Do palmito nasceu palma, / Quero que você me diga / Quem entrou no céu sem alma?” Dizia que Cristo subira ao céu levando a cruz. Contava diversas histórias de Lampeão, Maria Bonita e seu bando de cangaceiros, ciganos, retirantes, tropeiros e o bumba-meu-boi: “O meu boi morreu,/ Que será de mim, / Vai buscar outro boi, / Maninha ô, lá no Piauí..."
Queixava-se de cegueira, visão monocular: enquanto mexia uma tigela de torresmo, um salpico de graxa de porco queimou-lhe a retina.
Os netos corriam, deslizavam no cimento liso da sala imensa, pulavam cercas, armavam balanços no pé de juazeiro, jogavam futebol: tantas brincadeiras diárias a impacientava: “Deixem de buzina!...” E ordenava, dando ocupação aos desocupados: "Peguem os galões e vão buscar água no açude: quero ver tanques e potes cheios, depois separem os bezerros dos úberes..." Em momentos menos tensos, ela prendia o coque do cabelo com garras artesanais feitas de arame e dirigia-se àquele menino mais comportado: “Faça um café forte, bem coado - torrado com rapadura, em tigela de barro -, traga o cachimbo e o fumo que 'tão na meia-parede da despensa". Destampava a lata e começava a retirar a cera impregnada (resíduo de nicotina). “Oxente, fumar pra ficar mais tonta, vó?" Respondia: "Só saio de casa em fim de mês, p'ra ir missa no 'Jerimum'. Essa fumaça é meu espairecimento”: pofo, pofo, pofo... O fogão à lenha conservava pequenas brasas soterradas nas cinzas, que ela ia catando com os dedos encalejados, arremessando-as ao cachimbo, formando outra fornalha, justificando: “Tem gente que pisa em brasa e não se queima..."
E assim foi, até cair doente e perder toda a fortaleza que a envolvia. Não dominou mais os sentidos: o esquecimento se instalou em tudo, mas não fazia esforço na lembrança para pedir o cachimbo intuitivo, às vezes negado por precaução a sua saúde estreita.
Manhã me trazendo da cidade: entreguei-lhe um buquê de flores brancas, mais belas do que cheirosas e logo se lembrou do pé de bugari: “Já tive disso aqui, plantado na biqueira”, resumiu a matriarca – olhar horizontal para o norte, triste e embaçado pela catarata –, gesto vegetal sobre o colchão de capim: bramante com estampa floral, costurado com barbantes.
Cara, gostei muito desse teu blog, muito mesmo. Não pude e não vou conseguir agora ver muita coisa, mas os textos que li são ótimos. Você tem um quê de Guimarães Rosa que me agrada muito. Voltarei outra hora e sempre que der. Um abração.
ResponderExcluirPois bem Marcelo, me visite sempre, que o leitor alimenta àquele que escreve. Um solilás para você. Obrigado
ResponderExcluirMuito bonito... vi as cenas com os olhos da imaginação....abç
ResponderExcluirEu queria que você visse esse texto. Procurei sinalizá-lo aos moldes da realidade. Bjs.
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