terça-feira, 15 de setembro de 2009

Sangue de Pedra

Rupestre do sítio "Porteira", município de Nova Palmeira-PB
                        
           
                           a Nivaldete Ferreira

Em 1969 meu pai buscava uma árvore rara, o Pau D'arco. Falava-se em remédio do mato, hoje fitoterápicos. Mas haviam outras plantas: Mororó, Cumaru, Quixabeira, Angico... Quando descascadas, vão-se desbotando no molho d'água: saram doenças de dentro. E subimos a serra com suas armadilhas, sem nenhuma vereda, apenas os caminhos finos e sutis inventados pelos calangos. As macambiras exibiam seus pendões amarelos e os pássaros desafiavam xiquexiques e facheiros, atraídos pelas frutas vermelhas.
 Já chegando no cume da serra: "Vou lhe mostrar a casa dos índios", nome genérico à primitividade do homem. E suas mãos de carne couberam nas outras mãos de pedras: "Eram mãos de homens como eu", fazendo medição, sobrepondo o sangue-mineral com as falanges dos dedos.
É um lugar de silêncio e mistério. Retornei à casa com um feixe de taquari, para fabricação de gaiolas. Meu  pai achara o madeiro da viga e as cascas que curam.
Anos mais tarde criei coragem e fui sozinho escalar a serra. O trajeto exalava misticidade: som de folhas secas nas alpercatas, a música do vento e a velocidade dos seixos que desabavam. Lá em cima conversei com o universo, escutei vozes vibrantes subindo pelo poente da serra: eram legiões de espíritos buscando o acampamento. Intuitivamente senti a presença de Dom Juan, que me alertou sobre alguns perigos e tive que descer no desaparecer do sol. O velho índio que misturava plantas alucinógenas, descrito por Carlos Castañeda, desencarnara e muitas vezes eu imaginei está sendo seguido pelos olhos do bruxo. Onde caminham poucos homens, é onde habitam tantos outros seres. No pé da serra ainda havia restos de sol: descansei no umbuzeiro e fui me libertando daquelas informações ilusórias, ainda emocionado, quase em transe.
Hoje escuto o chamado da serra, mas dessa vez irei senti-la com passadas curtas,  sem a marcha suicida de me encontrar.  Hei de rodeá-la pelo nascente, desviando a trilha das pedras dos sacrifícios  e das locas mal-assombradas de um sepulcro. Não quero a proteção de facas na cintura nem de foices esfolando o mato: seguirei o  cheiro  das flores cactais,  as vozes dos saguis e os apitos indicadores de cigarras. Desejo muito esta manhã,  quando sentarei junto do bebedouro cristalino e milenar, por debaixo das pedras esculpidas. Ninguém conhece esse lugar: meu pai só me indicou, talvez deixando-o para o dia em que  a solidão não fosse nenhum tormento. Alí não lembrarei de nada do que ficou em baixa altitude, execeto a presença viva do meu pai que não pôde mais me acompanhar.  Então rezarei o salmo  23 e um poema que trago decorado.

 


2 comentários:

  1. Muito bonito... Gosto dessas intimidades com o desabitado, "onde há muitos seres"... beleza! Abraços.

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  2. Eu já nasci místico, mas tento suavisar as percepções. Quero conhecer a física quântica. Obrigado pelo incentivo.

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