segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Botija do Mercado São José


a Marcelo Amorim

Homem que sonhou com botija, marcou encontro com o desconhecido na porta do Mercado São José, no Recife antigo. Aquele mistério lhe impacientava, mas se manteve calado à espera da suposta pessoa do além. Um camelô ficou olhando aquele homem de poucos movimentos, sem ação, perdido na cidade: "O senhor já tem muitas horas aí parado, tem rosto amarelo de fome e olhos murchos de cansado, se carece de ajuda, responda sem cerimônia". O sol por trás dos casarões deixava as ruas debaixo de sombra. À frente das lojas de miudezas e cosméticos, vendedores anunciavam as últimas promoções e ambulantes gritavam o preço das bugigangas importadas do Paraguai, muito poucas de Maimi.
O sertanejo comeu tapioca com coco e milho cozido com manteiga da terra. Depois respondeu sem rodeio, porque segredo torna o fardo mais pesado. Não pensou em consequências: "Duas noites se passaram, depois de um sonho, daqueles que o sujeito jura ser verdade. Uma criatura sisuda - vestia calça comprida como essa, diferente apenas nas bocas frouxas e agitadas -, disse-me que minha sorte estava aqui no mercado, mas não falou se era dentro nem fora. Mandou-me ter pressa nas pernas, viesse em qualquer transporte... E já mostrei muito minha cara, de tanto ir e voltar, a todos esses vendedores e suas clientelas, mas ninguém me conhece por cá: nada aconteceu ontem nem hoje. E olhe que vim de longe (mas só fazia apontar...). Sou homem de poucas coisas e não preciso de tanto. Mas essa promessa me levantou as orelhas, por isso avancei nas léguas e demoro nessas horas, mas só espero por hoje. A sorte vem quando quer, tem jeito de gente lerda".
Antes que ele terminasse o falatório, o camelô resolve lhe tirar as esperanças, talvez penalizado com aquele homem acocorado, de pés roliços de inchaço, que de vez em quando estirava a ossada, com gesto de penitente: "Isso não existe, vá cuidar dos afazeres, que eu sei de história igual. Aconteceu comigo mesmo e garanto que era voz limpa, imitando gente viva, sem ter a fala enrolada, sinistra, de gente de outras terras. Moro no bairro da Encruzilhada e assim que me deitei, a cabeça ficou zonza: dita voz me dizia que havia um tesouro em sítio distante daqui, e me daria por dono, sem confusão de herdeiros. Disse-me a voz doadora, que eu me apeasse em Caruaru, seguisse para o norte em estrada de barro, que antes de um serrote branco haviam cinco umbuzeiros, virasse à direita e caminhasse quinze léguas ao poente... Coisa dada é mais difícil! Apontou a direção, sem dizer nome de município nem marcou o canto certo, ficou para ser descoberto pela pessoa donatária:  encontraria uma pedra graúda, cor de galinha pedrez, onde uma cabra nativa costuma se deitar. Debaixo da pedra a botija, com objetos brilhosos como o sol. Só não fez dar nome às peças, dizer quantidade nem valor. Aí calou-se de vez, apagou-se como coisa acesa. E toda manhã bem cedo chego aqui nesse mercado: abafado, cheirando à sola curtida, jabá, plantas e cascas de chá, temperos e incensos de candomblé. Mas de vez em quando me afasto um pouco: farejo o mar aí perto, olho os navios estrangeiros descarregando no cais e algumas pernas roliças que estufam das mini-saias. Esse é um negócio de pouca venda, mas faço feira desse apurado. Esse boato de riqueza fácil é assunto já encerrado. Ia eu me perder pelo mato, sem ter o canto traçado por linhas certas? Deu-me isso 'de boca', talvez já tenha dado a outro da redondeza, morador mais precisado - há poucas braças da botija -, também sem papel passado. E caçadores esfomeados já devem ter matado a cabra...”
O sangue subiu às faces daquele que estava descorado: "É, isso é mesmo ilusão, já vou deixar o mercado", apressou-se o viajante bebendo o resto d'água morna do cantil. Entrou na rua Direita, em direção à rodoviária do cais de Santa Rita, porque acabara de escutar do camelô – da boca de pessoa viva, vendo a língua se mexer, sem embaraço de sonho –, as referências necessárias: o sítio, a pedra e a cabra eram o cenário da sorte tão esperada. O lugar era seu pasto, passado a papel de escritura, caminho de todo dia, na divisa de Princesa, aceiro de Pernambuco. Ao chegar em casa não esbanjou alegria, animou, discretamente, o rosto. E cinco bois cevados moveram a pedra a chicotadas bem dadas, daquelas que deixam os lombos ensaguentados e os pescoços com calos, peladuras e marcas de cangas. Cavou dois metros de chão e arrancou um caixote feito de madeira de lei, enrolado com tiras grossas de borracha e batido com prego caibral. Um machado foi usado para abrir a lenha do "baú" e as moedas deslizavam das brechas, como milho debulhado, desabando pelas bocas dos silos. Por debaixo do colarinho de sua camisa de mescla, sobre o peito tostado pelo sol nordestino, descia um rosário de contas brancas e azuis. E a tarde ardente já se aninhava nos lombos das serras, quando ele ajoelhou-se e rezou, ali mesmo, no pedregulho misturado de ouro.  Não pensou em vaidades citadinas: entrou no galpão e guardou  mais de duzentos quilos de moedas, em quatro barris, junto com cangalhas, arreios, cabrestos e outros acessórios. Entrou no curral, cortou palma e abasteceu cocheira. Já anoitecendo, debaixo do pé de jabuticaba, pôs-se a banhar-se numa bacia de ágata, com sabão caseiro, feito de sola cáustica e vísceras. É chamado à mesa: branca de leite, amarela de xerém. E dele não se escutou alaridos, festejos, anúncios nem alegrias esfuziantes daqueles que enriquecem. A mulher obedecia às mesmas discrições e os dois filhos adolescentes não ousariam divulgar a novidade na vizinhança escassa, mas podiam trocar alguns cochichos e inibidos sorrisos. Descansou uma semana: selou um burro de raça e duas mulas de força, depois de encherem a pança com pasta de caroços de algodão. Dividiu o peso das moedas em quatro sacos de estopa, misturadas com castanhas de caju e dirigiu-se à cidade de Caruaru-PE. Traria novas moedas convertidas, com bustos atualizados, porque aquelas exumadas, tinham em suas faces bustos e brasões imperiais, mesmo que no início do século XX, o Brasil já estivesse sob e domínio inovador da República e as marcas do império estavam (des)enterradas. O brasão e o selo do país estavam iluminados pelas estrelas do Cruzeiro do Sul.

6 comentários:

  1. OI, Francis, Você publicou onde mais esse belo conto?... Lembro de já ter lido... (falta vc modificar aquela configuração... Continua aparecendo o alerta...). Um grande abraço.

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  2. Parece que a prosa acendeu mais a poesia, ou em vice-versa. A princípio era um ensaio que foi revisado... Obrigado por ter gostado do contado.
    Voz de robô: "Configuração feita com sucesso"(risossssssss).

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  3. Gosto de como você escreve por duas razões. Primeiro, pelo Brasil que tem nisso tudo, por dentro e por fora, e porque leio sem precisar saber da história. Texto bom, pra mim, é isso. Mesmo se não acontecer nada, leio com gosto, porque a própria escrita já é um acontecimento.

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  4. Suas palavras são constantemente animadoras. Seu nome brilha, junto às moedas, viu?

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  5. Francis, agora vi!!! Putz, tinha passado batido pela legenda da imagem, ô correria sem sentido. Se eu te agradecesse aqui com alguma palavra que fosse estaria mentindo, porque estou sem palavras ;-) Um grande abraço, amigo.

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  6. Bom que vc viu, sem grilo: "outros outubros virão..."

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